conselho para gerir imposto fragiliza pacto federativo
Ponto controverso da proposta da emenda à Constituição (PEC) da reforma tributária, aprovada pela Câmara e agora em tramitação no Senado, o Conselho Federativo promete ser alvo de impasses no Senado. O colegiado terá a função de gerir os recursos destinados a estados e municípios.
Economistas e tributaristas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que, além das implicações no pacto federativo, pela perda de autonomia de estados e municípios, a criação do novo órgão, se mantida, vai adicionar novas complexidades ao sistema de impostos, além de aumentar o potencial de contencioso tributário.
O Conselho
foi incluído no texto final da PEC, aprovada na Câmara, que estabeleceu um IVA
dual (Imposto sobre Valor Agregado), separando os tributos cobrados pela União
dos estaduais e municipais.
Os impostos federais (PIS, Cofins e IPI) passaram a constituir a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Já o ICMS, estadual, e o ISS, municipal, foram consolidados no IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). Para gerir o IBS foi criado o Conselho Federativo, que ainda será regulamentado por lei complementar.
Na prática, será o Conselho, e não mais governadores e prefeitos, quem tratará dos impostos a serem repassados a estados e municípios. Caberá a ele legislar, arrecadar, distribuir os recursos e também dirimir as prováveis controvérsias.
As críticas à estrutura centralizadora do órgão são inúmeras. O Conselho chegou a ser classificado pelo ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, em entrevista ao “Poder360”, como “geringonça federativa”, com competência de “fiscalizar, arrecadar e até criar lei”.
Para o jurista e professor Ives Gandra, ao centralizar o poder de gestão e decisão, o Conselho reduz drasticamente a competência financeira dos estados e municípios. “Nosso federalismo pressupõe autonomia administrativa, política e financeira. O Conselho fragiliza o pacto federativo”, diz.
Ele lembra
que a proposta inicial da PEC não previa o Conselho, porque propunha um IVA
único. Foram os próprios parlamentares, estimulados pelos governadores que
temiam perder a autonomia, que pressionaram para a criação de um IVA dual, que
não ficasse a cargo da União. Na prática, segundo Ives, não adiantou e o
princípio de centralização permaneceu.
A
centralização também é criticada por Roberta de Amorim Dutra, especialista em
Direito Tributário. Segundo ela, a PEC é um verdadeiro “atentado”
à autonomia dos entes federativos de arrecadar e gerir sua própria
receita, assegurada pelo artigo 60 da Constituição, que não pode depender de um
agente central.
Fernanda Terra, mestre em Direito Tributário pela FGV e sócia do escritório Terra & Vecci, ressalta que tão grave quanto substituir a gestão dos governadores e prefeitos é a criação de um “novo ente para definir as diretrizes do tributo que é a principal fonte de receita dos estados”.
Economista vê risco de fraudes e erosão na arrecadação
Especialista em contas públicas, o economista Felipe Salto, da Warren Rena e ex-secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, é um dos críticos da reforma, que ele diz ter sido desconfigurada.
Sobre o Conselho, ele rebate o argumento dos defensores da centralização como base para funcionamento do IVA. “O repasse das receitas arrecadadas para o estado de destino, e não mais de origem, previsto pela PEC também não justifica a criação de um órgão paternalista”, diz.
Além da
questão federativa, Salto prevê problemas na devolução dos créditos para os
contribuintes intermediários. Com a implantação do IVA, cada empresa recolhe
efetivamente apenas o imposto referente ao valor que adicionou ao produto ou
serviço. É o chamado princípio da “não cumulatividade plena”. Todo o
tributo pago na aquisição de insumos ao vendedor, incluindo gastos com energia,
telefonia, marketing e transporte, vira crédito ao contribuinte.
Pelo texto aprovado, o Conselho também será responsável pela devolução que será feita de modo automático, por meio de uma conta central. Para Salto, o mecanismo não é adequado e estimulará fraudes, sobretudo com as notas falsas. “Isso pode levar a uma verdadeira erosão da arrecadação”, alerta.
Serão necessários, assim, novos esforços para garantir a devida fiscalização, com prazo para homologação das notas e liberação dos créditos. “Tudo isso poderia ser evitado por meio de uma gestão coordenada pelos estados. Não há qualquer necessidade de se criar uma estrutura para resolver nenhum dos problemas apontados”, avalia.
Caso o Conselho não seja revisto, Salto espera que no Senado sejam, ao menos, separadas as operações interestaduais das operações internas do ICMS, futuro IBS, que acontecem dentro do mesmo estado. “Um meio do caminho seria reservar ao Conselho Federativo apenas a gestão e a ingerência sobre as operações interestaduais e preservar a autonomia dos estados nos repasses internos”.
Composição do Conselho também é alvo de disputa entre governadores
Além da perda de autonomia, os critérios de composição do Conselho Federativo também foram, desde o princípio, fonte de insatisfação e desconfiança entre governadores e prefeitos, que procuraram garantir a representatividade de estados e municípios.
A PEC estabelece que cada uma das 27 unidades da Federação indicará um representante no Conselho. O conjunto dos 5.568 municípios elegerá outros 27 membros, dos quais 14 eleitos com base nos votos de cada município e 13 com base na média ponderada dos votos de cada município pela respectiva população.
A princípio crítico da centralização do Conselho, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo, recuou ao conseguir a alteração para equilibrar o poder de decisão. Junto com outros governadores das regiões Sul e Sudeste, ele conseguiu que o relator incluísse uma regra que prevê que o grupo de estados vencedores em deliberações precisará representar pelo menos 60% da população brasileira.
A composição, no entanto, está longe de agradar a todos. Para alguns governadores, a divisão aumenta o poder decisório de Sul e Sudeste, por isso os critérios estabelecidos devem consumir boa parte da discussão do Senado.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), o único frontalmente contrário à reforma, diz que recorrerá ao STF caso essa composição seja aprovada. Para ele, quem vai mandar no Conselho Federativo são os estados de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. “Não podemos admitir que os estados sejam divididos entre alto e baixo clero, onde os ‘melhores’ decidem como será feita a divisão dos recursos destinados aos demais”, disse Caiado ao jornal “O Estado de S. Paulo”.
Os senadores, que se debruçarão sobre a proposta após o recesso, prometem uma discussão mais serena, mas é certo que haverá alterações. Diferentemente da Câmara, onde o número de deputados é proporcional à população de cada unidade da federação, o Senado tem representação paritária, com três senadores para cada estado, o que pode dar um novo contorno à composição e ao sistema de deliberações.
Revisão da PEC no Senado não deve evitar aumento de alíquotas
O Conselho é o maior ponto de embate na tarefa árdua que o Senado tem pela frente, mas há inúmeros outros impasses. Melhorar o texto aprovado sem discussão profunda vai consumir, segundo expectativas mais otimistas, quase todo segundo semestre. “Temos hoje um texto constitucional de princípios que nos propõe um mar de incertezas”, resume o jurista Ives Gandra.
A principal delas é a alíquota dos IVAs. A soma do IBS e da CBS era estimada inicialmente em 25%, levando em conta que alguns produtos e serviços terão redução de 60% e outros serão isentos. Mas os cálculos partiram da premissa que todos os setores e empresas teriam a mesma carga tributária em um período de transição de dez anos.
O grande problema foram as exceções que parlamentares incluíram na PEC para vários setores da economia, entre eles serviços de educação e saúde, medicamentos, insumos agropecuários, produtos de higiene pessoal, produções culturais e jornalísticas, combustíveis, restaurantes, hotelaria e serviços financeiros.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que a alíquota padrão pode ser superior a 28% para compensar as exceções, o que a tornaria a maior do mundo.
Para Ives Gandra, é provável que a alíquota ultrapasse os 30%, considerando as exceções e os fundos de compensação para estados que foram prejudicados com a redução do ICMS ao longo da transição do sistema tributário. Já o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, descartou a possibilidade de a alíquota ser superior a 30%.
Para aprovar a reforma tributária, a União se comprometeu a bancar o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) com aporte de R$ 8 bilhões, em 2029, e elevação gradual, até chegar a R$ 40 bilhões a partir de 2033, em valores corrigidos pela inflação. Os critérios de repasse, que foram motivo de controvérsia nas negociações com governadores, acabaram não entrando na PEC e poderão ser regulamentados por Lei Complementar.
Para Ives Gandra, isso significa que já se sabe que haverá estados que vão ganhar e estados que vão perder. “Se alguém vai perder e será compensado, isso significa que quem vai pagar a conta é o contribuinte”, afirma.
O mesmo ponto é enfatizado por Felipe Salto. Para ele, o Senado precisa retirar do texto a obrigação de que a União cubra todo e qualquer benefício do ICMS por meio de fundo. Salto defende que também seja suprimido o artigo 9º da PEC, que possibilita que as exceções a setores específicos sejam multiplicadas por meio de Lei Complementar. Tudo isso significa aumento da carga tributária.
Além disso, segundo ele, o aumento do tempo de transição federativa de um sistema para outro, estimado em 50 anos, precisa ser encurtado, e a lógica de alíquotas estimadas tem de dar lugar à fixação de alíquotas. “É preciso dar previsibilidade para os contribuintes”, diz.
Para Ives Gandra, previsibilidade é tudo que o texto não oferece. Segundo ele, não há nenhuma projeção dos impactos da reforma para os diversos setores ao longo da transição. “Os próximos anos serão muito complicados para as empresas que terão que conviver com os dois sistemas”, diz.
Não há também nenhuma informação, nenhum esboço de Lei Complementar que vai regular o futuro dos contribuintes. “Tudo que temos é promessa de que o sistema estará equalizado em 50 anos”, resume o jurista.