“A Fantástica Fábrica de Chocolates” ensinou que tudo tem seu preço
Em primeiro lugar, este texto foi inicialmente pensado para ser sobre A Fantástica Fábrica de Chocolates, a
versão original do drama musical feito em 1971 e disponível no streaming pelo HBO
Max. Quando de seu lançamento, e por algumas décadas depois, sempre foi
considerada uma obra interessante, mas arrítmica; adorável, mas igualmente
cruel. Trata-se, portanto, de um genuíno exemplo de clássico que conquistou esse
título somente com o passar dos anos, quando, exibição após exibição, análise
após análise, foi-se conhecendo melhor a gênese e o propósito de Willy Wonka.
Em segundo lugar, refilmagens, de uma forma geral, servem simplesmente
para se ganhar mais dinheiro com um filme – para todos os efeitos – novo, como
seria o caso de Charlie e a Fábrica de
Chocolates, a versão de 2005, disponível no streaming pelo Prime Video. E
atenção para o “seria”, pois em alguns casos extremamente raros, refilmar
significa lapidar ou lançar um novo olhar, com o objetivo de se alcançar outro
significado em comparação à obra original, o que se aplica perfeitamente a essa
releitura assinada pelo diretor Tim Burton e também já considerada um clássico.
Sendo assim, ainda que brevemente, vamos analisar esses dois trabalhos.
Caso ainda não tenha notado, a primeira e maior diferença entre os dois filmes
aparece justamente no título. A versão de 1971 dirigida por Mel Stuart é uma
adaptação bastante alterada do romance escrito pelo britânico Roald Dahl (ele
mesmo assinou o roteiro) e que estranhamente destaca ser uma história sobre ou
contada por Willy Wonka (Willy Wonka and
the Chocolate Factory, no original). Já Tim Burton preferiu a fidelidade e
seguir o raciocínio de Dahl, dando luz ao personagem destacado no título
original do livro, o menino Charlie (Charlie
and the Chocolate Factory).
Em ambos os filmes, Willy Wonka é um cruel e recluso dono da maior
fábrica de chocolates do mundo que, certo dia, decide fazer um sorteio e
finalmente abrir as portas da fábrica e receber cinco crianças para um tour
inesquecível. Os ingressos são tíquetes dourados, que foram escondidos em
barras de chocolate espalhadas pelo mundo. Na versão de 1971, no entanto, Wonka
(interpretado por Gene Wilder) é mais sádico, quase um psicopata e simplesmente
assustador. Já na versão de Burton, Wonka (Johnny Depp) permanece um homem
perturbado, mas que agora guarda lá no fundo algum resquício de humor e
humanidade. Uma das crianças sortudas que terá a chance de explorar aquele universo
de chocolates é Charlie, um garoto pobre, de origem muito humilde, mas sereno e
compreensível. As outras quatro possuem temperamentos bem diversos e de criação
familiar distinta: tem a garota egoísta e competitiva, o gordinho comilão, o
metido a inteligente e a riquinha pedante e mimada.
Alter ego do escritor
São perfis bem ao gosto de Willy Wonka que, como iremos descobrir, quer
na verdade testar as habilidades e virtudes daquelas crianças com o objetivo de
escolher entre elas um possível sucessor para a fábrica de chocolates. O
problema são os métodos aplicados por Wonka. Ele é manipulador, amoral, cruel!
Críticos da literatura de Roald Dahl indicam que Wonka é praticamente o alter
ego do escritor, que inclusive chegou a admitir ser antissemita (um horror!). O
suspeitoso racismo de Dahl é justificado inclusive nos personagens Oompa
Loopas, homenzinhos que povoam a fábrica e interpretam os números musicais que
pontuam e esclarecem as características de cada criança.
Seja como for, é preciso um certo esforço para manter o distanciamento entre a possível e ignóbil vida do autor e a ficção por ele criada. E, nesse sentido, Dahl consegue criar um universo, mesmo que chocante, em que a principal lição a ser dada às crianças é que elas devem logo cedo aprender o conceito de frustração. Nada na vida é um presente; tudo tem seu preço e as coisas são oferecidas mediante um enorme esforço que, se não comprovado, pode haver punição. Para Willy Wonka, metaforicamente falando, a punição está justamente numa sedutora montanha de barras de chocolate, mas que exige bastante moderação para ser consumida.
(Em tempo: está prometida para o mês de dezembro a chegada aos cinemas de Wonka, uma prequela do romance original de Dahl, agora com Timothée Chalamet no papel do dono da empresa de doces. O trailer foi lançado nesta semana.)