A fé costuma falhar


A Apple desiste do carro autônomo e elétrico. Por quê?

O mais interessante de projetos flopados é o aspecto quase religioso com que a fé em seu sucesso se dissemina entre os participantes

A Apple desistiu de desenvolver um carro autônomo elétrico. Depois de 10 anos de dedicação ao invento, a companhia concluiu que as margens apertadas da indústria automobilística não eram suficientemente atrativas para uma companhia acostumada com lucros generosos (Valor Econômico, 09/04/24). Bem, você perguntará, mas a rentabilidade de fabricar e vender carros era muito melhor uma década atrás, quando a empresa entrou no negócio? A óbvia resposta negativa encadeará outra pergunta: por que diabos então a Apple meteu-se nessa aventura, se desde o início ela não era promissora economicamente?

Há um somatório de razões plausíveis. A primeira é que, antes de se começar a testar novas tecnologias, não se sabe exatamente todas as suas aplicações e, consequentemente, suas possibilidades criativas e comerciais. É preciso um bom período de hands on para desbravar o terreno e entender suas peculiaridades, potenciais e limitações. A fronteira tecnológica, em 2014, parecia ser os veículos autônomos, dependentes de uma expertise que a Apple, altamente capitalizada, detinha – por que não tentar, então?

Um segundo conjunto de razões diz respeito à dinâmica interna das organizações. Em um artigo já citado neste blog, uma pesquisadora lembra que fracassos se devem à confiança exagerada numa ideia, contribuindo para constituir uma “crença coletiva” quase irracional. Isso torna os integrantes da equipe cegos aos maus resultados que se acumulam ao longo do tempo. É bem possível que uma empresa acostumada a sucessos contínuos, como a Apple, tenha sido vítima de um fenômeno do tipo.

Finalmente, há a falácia dos custos irrecuperáveis, viés cognitivo que torna mais difícil abandonar qualquer ideia depois que se já investiu muito nela – mesmo que persistir se desenhe mais custoso econômica, física e emocionalmente. O desenvolvimento do icônico Concorde, avião supersônico já fora de operação, foi um caso típico: custou 20 vezes mais que o estimado inicialmente e nunca deu lucro.

Há antídotos a todos esses males, claro. Uma avaliação do tamanho atual e projetado do mercado em que se vai ingressar é a mais evidente. E, também, a mais inconfiável em alguns casos, pois o mercado se redimensiona de tempos em tempo conforme novas aplicações para uma tecnologia são descobertas ou tornadas obsoletas. A melhor prevenção, mesmo, é desde o início dos trabalhos instituir alertas que permitam avaliar periodicamente o andamento das iniciativas e determinar critérios para continuação ou simples desistência.

O mais interessante de projetos flopados, segundo o artigo mencionado anteriormente, é o aspecto quase religioso com que a fé em seu sucesso se dissemina entre os participantes. Por convicção, omissão ou oportunismo, ninguém contesta o dogma que aponta uma Terra Prometida de inovação e de lucros, mesmo que sinais contrários volta e meia apareçam. O resultado é que organizações podem se transformar em pequenas seitas por algum tempo, o que no caso da Apple não deixa de ser irônico: acostumada a ser beneficiária desse sentimento entre seus consumidores, acabou vítima ao vê-lo instaurado em meio aos próprios colaboradores.



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