“Alcarràs” é obra-prima em que família de agricultores vive cenário difícil
Três meninos brincam num carro abandonado no meio do campo. Em sua imaginação, eles estão sendo atacados por um invasor alienígena e precisam se defender. Os gritos de seus pais interrompem a brincadeira, pedindo que eles saiam imediatamente de dentro do automóvel. Os garotos correm enquanto se aproxima uma espécie de grua e iça o carro, levando o mesmo pelos ares como se fosse um ataque de um monstro de ficção científica. É apenas o começo de Alcarrás, disponível no serviço de streaming Mubi, e já fica clara uma das principais leituras dessa obra-prima. Uma família de agricultores na cidade espanhola de Alcarràs observa como suas terras de plantação de pêssego estão sendo destruídas para a criação de áreas para colocação de placas de energia solar. Não existem naves espaciais nem grandes explosões, mas o destino que espera a família é apocalíptico.
“Se em Verão 1993 (2017) eu contava como minha vida mudou quando perdi meus pais e fui morar com meus tios aos 8 anos, em Alcarràs utilizo uma estrutura dramática similar me baseando em uma história e em personagens que conheço bem. No fundo, também é um duelo que se desenvolve durante um verão, em que meus tios e primos perderam o modo de vida que haviam herdado há várias gerações”. A diretora Carla Simón resumiu assim o processo de criação desse filme, que começou quatro anos antes de ser concluído, contando o adiamento que teve de ser feito por causa da pandemia de covid-19.
A cineasta catalã é uma admiradora do neorrealismo italiano, da verdade que os atores entregam ao interpretarem o que eles já viveram. Por isso, os atores não são profissionais: são agricultores que expressam, mais com seus gestos do que com palavras, uma espontaneidade filmada em seguidos planos abertos. A jovem diretora volta a demonstrar uma sensibilidade requintada com os detalhes que fazem avançar uma narrativa coral na qual cada personagem tem vida própria.
Jornada cativante e delicada
Mas a presumível tragédia não tem a falta de oxigênio que costuma acompanhar esse tipo de história de desenraizamento e injustiça social. “Queria mostrar como em meio a tantas dificuldades existe uma família numerosa e unida, que faz com que os personagens não se quebrem. A reconstituição de uma tragédia através da família é algo que vivi sempre com muita naturalidade, e que já tinha refletido em Verão 1993”, diz Carla Simón.
A jornada dramática dos personagens é cativante e muito delicada. Cada um deles contribui com uma perspectiva distinta e complementar para o conflito. A cineasta consegue fazer com que o espectador interiorize cada uma dessas almas simples e sinceras, sem celulares ou computadores, com capacidade de viver o presente e encontrar felicidade no cotidiano: uma festa tradicional, um baile da criançada, uma conversa noite adentro. Essa linguagem atraente só pode ser criticada pela insistência em um vocabulário repetidamente sujo e desnecessariamente ofensivo.
No Festival Internacional de Cinema de Berlim de 2022, o filme foi recebido como merecia e acabou ganhando o Urso de Ouro, algo que uma produção espanhola não conseguia desde que Mario Camus conquistou esse prêmio em 1983, por A Colmeia.
© 2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.