Com nossas liberdades ameaçadas, é hora de rever série de Larry Charles



Passar por
uma batida do General Bunda Pelada no auge da guerra civil da Libéria era uma
experiência amedrontadora e com grandes chances de se tornar traumática. Escudado
por seus capangas, o senhor da guerra tinha o hábito de decapitar cidadãos
liberianos e comer carne humana, entre outras selvagerias inomináveis, algumas
envolvendo mulheres grávidas totalmente inocentes. Levando em conta esse histórico,
ninguém imaginaria assistir a um bate-papo em que General Bunda Pelada elenca
seus humorísticos televisivos favoritos. Mas esse é um dos pontos altos de O Perigoso Mundo da Comédia, série
documental em quatro partes lançada pela Netflix, em 2019.

O programa é
conduzido por Larry Charles, roteirista e diretor de vários episódios do icônico
seriado Seinfeld e dos filmes com o
repórter cazaque Borat e com a celebridade da moda Brüno (ambos personagens de
Sacha Baron Cohen). Seu interesse: desvendar como são as cenas de humor em países
sofridos e com liberdades cerceadas, casos de Iraque, Arábia Saudita e Somália,
além de investigar se ditadores e seus subordinados sanguinários acham graça de
algum tipo de produto cômico. No caso do General Bunda Pelada, ficamos sabendo
que ele é fã de um antigo e singelo programa em que Bill Cosby conversa com
crianças (Kids Say The Darnest Things).
O chefão dá essa resposta logo após afirmar que a carne humana tem gosto de
costeletas de porco.

Assim,
equilibrando risos e situações surreais, Larry Charles costurou uma série
interessantíssima, que não apenas sobreviveu bem nesses quatro anos que se
passaram desde sua estreia, como cai como uma luva para o momento em que
vivemos no Brasil, em que humoristas e podcasters sofrem perseguições absurdas
e perdem seus meios de sobrevivência. Se a tendência seguir escalando, nosso país
poderá se candidatar a figurar em uma segunda temporada de O Perigoso Mundo da Comédia.

Soldados piadistas

Os comediantes
iraquianos que fazem shows apenas para quem fala inglês em Bagdá e os abnegados
que contam piadas envolvendo os vírus HIV e Ebola na Libéria sustentam o
primeiro episódio da série. No segundo ato, Charles joga luz em soldados que sofreram
grandes traumas e adaptaram suas tragédias para shows de stand-up, bem como nos
humoristas que se apresentam para batalhões americanos lotados em zonas de
guerra, que clamam por um alívio cômico. Dá para se emocionar bastante com os
relatos dos militares abordados.

No terceiro episódio, O Perigoso Mundo da Comédia é menos feliz. Charles faz um recorte racial e vai ouvir imigrantes e descendentes de indígenas que trabalham com humor nos Estados Unidos. Fala também com destaques da nova direita, que brincam com o antissemitismo e outros temas pesados, porém sem sacadas bem elaboradas. Em vez de só apresentar os casos, Charles deixa seu progressismo aflorar e condena a linha de alguns entrevistados. Ele vai um pouco além no quarto episódio, que destaca a naturalidade com que nigerianos inserem situações de estupro em suas piadas. Nessa parte, Charles ignora o histórico cultural do país africano e defende que tais comediantes são míopes e insensíveis. É um desfecho um tanto melancólico, mas que não tira toda a força do documento, rico em cenários e personagens que todos deveriam ter a noção de que existem.



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