como governos pretendem taxar a alta renda
Pauta prioritária do Brasil na presidência do G20, a cobrança de um imposto global sobre super-ricos é apenas uma das iniciativas lideradas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, voltada a abocanhar uma parte dos recursos do estrato mais rico da população.
Diversas medidas arrecadatórias emplacadas ou em discussão neste terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) têm sido especificamente direcionadas à alta renda. O próprio presidente da República disse considerar que o imposto sobre herança é “nada” no Brasil quando comparado a alíquotas como as praticadas nos Estados Unidos.
Em julho, o ministro da Fazenda criticou super-ricos que, segundo ele, se aproveitam de artifícios para “evadir os sistemas tributários”, o que afetaria diretamente o combate à fome e à miséria no mundo.
Para ele, a falta de um tributo específico sobre grandes fortunas no Brasil faz com que, no “topo da pirâmide”, os impostos “sejam regressivos, e não progressivos”, o que torna a tributação desigual entre as diferentes camadas sociais.
É nesse contexto que a equipe econômica prepara propostas para uma reforma no Imposto de Renda (IR), que deve incluir a volta da tributação sobre lucros e dividendos distribuídos e pode criar uma nova alíquota para rendimentos mais elevados. No mesmo sentido, o governo já conseguiu dar início à taxação de rendimentos de ativos no exterior (offshores) e de fundos de investimento exclusivos.
No âmbito empresarial, a limitação no uso dos Juros sobre Capital Próprio (JCP) e o fim da retirada de subvenções estaduais da base de cálculo do IRPJ e da CSLL também miraram benesses voltadas a grupos específicos.
Haddad ainda tenta, porém até agora sem sucesso, acabar com a desoneração da folha de pagamento que beneficia alguns setores da economia e municípios de até 156 mil habitantes.
Na lista de ações mirando os mais ricos estão ainda mudanças previstas na reforma tributária, como a previsão de alíquotas progressivas para o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e de cobrança do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) de donos de aeronaves e embarcações.
Na outra ponta, para reduzir a carga que pesa sobre os mais pobres, o governo elevou a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), por enquanto para quem ganha até dois salários mínimos (R$ 2.824).
A promessa do presidente, desde a campanha eleitoral de 2022, é deixar livre do tributo rendimentos de até R$ 5 mil. Ele também já afirmou que vai acabar com o IRPF sobre valores distribuídos como participação em lucros e resultados (PLR) de empresas.
Na última quinta-feira (15), cobrado por sindicalistas, voltou ao assunto, mas sem se comprometer com prazo. Citando dificuldades em aprovar pautas no Congresso, ele disse que ainda está “esperando a oportunidade para que a gente possa dar o bote e aprovar o fim do Imposto de Renda sobre o PLR”.
Veja a seguir como os governos federal e dos estados pretendem aumentar a taxação dos mais ricos:
Governo quer retomar Imposto de Renda sobre lucros e dividendos
Na segunda etapa da reforma tributária, que será concentrada na tributação da renda, o governo deve propor a taxação de dividendos, parcela do lucro de sociedades anônimas distribuídas a acionistas e que é isenta de IR desde 1995.
“Muito provavelmente haverá o retorno da tributação de dividendos, junto com a redução da tributação da empresa”, disse o secretário especial para a reforma tributária, Bernard Appy, em agosto do ano passado, durante participação em evento organizado por sindicatos de auditores fiscais. Ainda não há, no entanto, uma previsão de alíquota para o rendimento.
Segundo declarou Haddad em julho, algumas propostas para a reforma do IR estão sendo preparadas para serem levadas à análise de Lula.
Em 2021, o então ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a encaminhar um projeto de lei que reformava a tributação sobre renda e previa a taxação de dividendos. Mas o texto, aprovado após diversas modificações na Câmara, não avançou no Senado.
A proposta de Guedes era taxar dividendos em 20% e reduzir a alíquota do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) em 5 pontos porcentuais, de 15% para 10%. Na Câmara, no entanto, a tributação do lucro distribuído foi reduzida para 15% e o corte no IRPJ, elevado para 7 pontos porcentuais. Além disso, a versão que foi encaminhada ao Senado previa uma redução de até um ponto na alíquota da CSLL.
Em julho do ano passado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que não deve lançar mão do texto parado no Senado. “Não devemos aproveitá-la, não. Nesse caso é lei ordinária, não é PEC [proposta de emenda à Constituição]”, explicou.
Nova reforma pode ter imposto mínimo de 15% sobre lucro de multinacionais
A nova etapa da reforma tributária também pode incluir um imposto mínimo efetivo de 15% sobre o lucro de multinacionais que operam no Brasil, uma medida negociada internacionalmente sob a coordenação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e já adotada em pelo menos 55 países, incluindo os da União Europeia.
Embora a alíquota de impostos sobre lucro de empresas no Brasil (IRPJ e CSLL) chegue a 34%, parte das multinacionais conta benefícios fiscais ou deduções na base de cálculo que derrubam a alíquota efetiva para menos de 15%.
Governo busca protagonismo com imposto global sobre ricos
O governo Lula estuda ainda um modelo de taxação de super-ricos que também precisaria ter alcance global para evitar a fuga de capital para paraísos fiscais. A ideia foi apresentada por Haddad no fim de fevereiro, durante reunião de ministros e presidentes de bancos centrais do G20 realizada em São Paulo.
Para desenhar a proposta, o governo contratou o economista francês Gabriel Zucman, professor assistente da Universidade da Califórnia Berkeley que lidera o EU Tax Observatory. Segundo o think tank, um imposto mínimo global de 2% sobre bilionários poderia arrecadar US$ 250 bilhões (mais de R$ 1 trilhão) por ano em todo o mundo. Zucman reconhece, no entanto, que a ideia não é fácil de ser executada e pode levar anos para se concretizar.
A necessidade de se discutir esse tipo de tributação foi reconhecida em um documento divulgado no mês passado, ao fim da 3ª reunião de Ministros de Finanças e Presidentes de Bancos Centrais do G20, realizado no Rio de Janeiro. Atualmente sob a presidência do Brasil, o G20 reúne as 19 maiores economias do mundo, além da União Europeia e da União Africana.
Constituição prevê taxação de ricos com Imposto sobre Grandes Fortunas
Integrante da base do governo, a bancada do PSOL na Câmara dos Deputados vai aproveitar a discussão de uma das propostas de regulamentação da reforma tributária para apresentar uma emenda visando instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
A ideia, segundo Ivan Valente (PSOL-SP), é levantar o debate sobre o IGF “pelo menos para a sociedade”. “Não sei se nós vamos conseguir as assinaturas e nem se nós temos correlação de forças para passar, mas o nosso partido vai apresentar [a emenda]”, assegurou.
A criação de um tributo sobre patrimônios vultosos está prevista na Constituição, no artigo 153. Diz o inciso VII que “compete à União instituir imposto sobre grandes fortunas, nos termos de lei complementar”.
Em 2019, o mesmo PSOL protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), na qual alega que o IGF é uma aplicação dos objetivos fundamentais da República de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
A ação recebeu voto favorável do então ministro Marco Aurélio Mello, mas o julgamento, iniciado em 2021, foi suspenso por um pedido de destaque de Gilmar Mendes.
Reforma tributária autorizou IPVA sobre aeronaves e embarcações
A etapa da reforma tributária aprovada fim do ano passado e que originou a Emenda Constitucional 132, embora esteja centrada no sistema de imposto sobre consumo, já abre caminho para alterações na tributação sobre patrimônio. A efetivação dessas mudanças, no entanto, depende dos governos e dos Legislativos dos estados e do Distrito Federal.
A Constituição agora permite, por exemplo, a incidência do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) também sobre veículos aquáticos e aéreos. Assim, proprietários de embarcações, como iates, lanchas e jet-skis, e aeronaves, como jatinhos e helicópteros, terão de recolher anualmente um valor proporcional ao bem, como já ocorre com os donos de automóveis terrestres.
Segundo o texto, ficam excetuadas do tributo, aeronaves agrícolas e embarcações voltadas a transporte aquaviário ou de pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência.
Por ser de competência estadual, no entanto, as alíquotas e regras de isenção do imposto precisam definidas por legislação estadual, por isso podem variar em cada unidade federativa. O valor arrecadado é dividido entre o estado e o município no qual o veículo é emplacado.
Um estudo de 2020 do Sindicado dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional) estimou um aumento de 10% na arrecadação do IPVA com a ampliação da base do tributo. Quase 90% dessa elevação viria da tributação sobre embarcações, enquanto o restante viria da taxação de aeronaves a jato, turboélice e helicópteros.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o atual texto constitucional é de que IPVA só alcança veículos terrestres. Nas últimas décadas, os ministros da Corte já barraram tentativas de cobrança do imposto sobre embarcações e aeronaves por estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Amazonas, por entender que o tributo sucedeu a antiga Taxa Rodoviária Única (TRU) e que, diferentemente de automóveis, veículos aquáticos e aéreos são licenciados pela União.
Estados querem imposto sobre heranças e doações com alíquota de até 21%
A parte constitucional da reforma tributária estabeleceu ainda algumas mudanças no ITCMD, que incide sobre heranças e doações. O texto estabelece, por exemplo, que o imposto terá alíquota progressiva de acordo com o valor da transmissão ou doação.
Por ser de competência estadual, o imposto hoje é cobrado de forma progressiva em algumas unidades federativas, enquanto outras recolhem uma alíquota fixa. O porcentual máximo que pode ser recolhido de ITCMD é de 8%, conforme resolução do Senado Federal.
Recentemente um estudo elaborado por técnicos de governos estaduais apontou para a necessidade de se elevar a alíquota para até 21%.
Deputados aprovaram tributação de previdência privada transmitida por herança
Deputados aproveitaram o Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, que regulamenta a reforma tributária, para autorizar estados para a cobrança do ITCMD sobre aplicações em planos de previdência privada transmitidos por meio de herança.
A ideia já constava de uma versão preliminar do projeto elaborado pelo Ministério da Fazenda, mas foi retirada do texto após vazar para veículos de imprensa e repercutir negativamente. Um grupo de trabalho da Câmara que analisou o texto reincorporou a medida em um substitutivo à proposição.
A intenção é uniformizar nacionalmente a cobrança do ITCMD sobre a transferência de recursos aplicados em planos de previdência privada. Hoje, por serem considerados uma espécie de seguro, planos do tipo VGBL em geral não são taxados quando transferidos.
Já sobre a modalidade PGBL há regras diferentes dependendo do estado, e está sob análise do STF uma definição sobre a incidência do tributo nesse tipo de aplicação.
Segundo o texto, o ITCMD passará a incidir sobre “aportes financeiros capitalizados sob a forma de planos de previdência privada ou qualquer outra forma ou denominação de aplicação financeira ou investimento, seja qual for a modalidade de garantia”.
Ou seja, caso a versão dos parlamentares seja aprovada, tanto planos PGBL quanto VGBL poderão ser tributados. No caso dos contratos VGBL, no entanto, somente estarão sujeitos à taxação os que tenham prazo inferior a cinco anos, contados da data do aporte até a ocorrência do fato gerador (transmissão da herança).
“As pessoas, no último momento, vão lá, passam todo o patrimônio para o VGBL, não pagam imposto nenhum”, justifica Ivan Valente (PSOL-SP), integrante do grupo de trabalho. “E a pessoa falece, é isso que acontece. Essa é a realidade, essa é a estampa do Brasil”, afirmou.
Ficam de fora os chamados contratos de risco, semelhantes a seguro de vida e nos quais a indenização paga aos beneficiários não tem relação com o valor aportado. A proposta ainda será analisada pelo Senado.