Concurso para professor de história em SP: filosofia grega é africana
Um concurso para professor organizado pelo governo de São Paulo chamou atenção pelo nível baixo e o conteúdo ideológico da prova de história — mesmo tendo sido feito sob a gestão de Tarcísio Gomes de Freitas (Republicanos), eleito em 2022 com forte apoio entre grupos conservadores.
O processo vai selecionar 15 mil professores para as escolas públicas de ensino médio e fundamental no Estado. Para elaborar o conteúdo da avaliação, o governo paulista contratou a Fundação Vunesp. A entidade é vinculada à Unesp (Universidade de São Paulo).
Racismo estrutural em pauta
A primeira pergunta da prova, realizada em 6 de agosto, menciona um livro do atual ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, e pede uma definição de “racismo estrutural”. A resposta correta é esta: “enfatiza um processo histórico e político que cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática.”
A ideia de racismo estrutural, criada nos últimos anos por pensadores radicais de esquerda, se baseia na premissa de que, mesmo que não haja um indivíduo racista em uma certa comunidade ou país, é possível que a própria “estrutura” social discrimine os negros.
Na parte específica da prova (que deveria testar os conhecimentos de História), mais metade das questões trataram da África, da escravidão ou do racismo.
Na questão 24, por exemplo, os candidatos leram que “as mulheres negras ainda têm que lutar para ter acesso a funções como secretárias ou recepcionistas”, tidas como “femininas e brancas”. Eles precisavam responder que “o avanço no status das mulheres em todo o mundo e no Brasil, nas últimas décadas, não produziu no país melhorias sensíveis à mulher negra” — o que é desmentido pelas estatísticas. Embora continuem mais pobres, em média, do que outros grupos, as mulheres negras tiveram uma melhoria de renda visível nas últimas décadas.
Para um professor de uma das melhores universidades públicas do país, doutor em História, que prefere permanecer no anonimato por medo de sofrer retaliações, a prova é problemática por três razões.
Em primeiro lugar, pelo forte conteúdo ideológico. Em segundo lugar, por usar uma literatura de baixa qualidade. Ele diz que, mesmo que a ideia fosse promover ideias como o feminismo e o pós-modernismo, havia melhores opções. “Uma coisa é você citar a Judith Butler, que tem o nome consolidado. Mas o que a gente está fazendo aqui é muito pior: a gente está apresentando o resto do resto”, diz ele, apontando o teor medíocre das questões.
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Filosofia grega é egípcia?
O terceiro problema apontado pelo professor é a distorção de fatos históricos. A questão 19, em especial, chamou a atenção dele. O texto usado como base para a pergunta equipara a cultura do Egito antigo à do restante da África, como se elas fossem parte de uma mesma civilização. Depois, atribui o sucesso da Grécia antiga inteiramente aos egípcios.
“Praticamente todo o conhecimento científico e filosófico da Grécia antiga teve origem no Egito”, afirma a professora da USP Elisa Larkin Nascimento, no trecho apresentado aos candidatos.
O texto ainda dá como certo o fato de que Sócrates, Platão e Aristóteles estudaram no Egito — o que, no melhor cenário, é apenas uma hipótese sem sustentação. “Os sistemas teológicos e filosóficos do gregos também têm origem no Egito, onde vários de seus fundadores, como Sócrates, Platão e Aristóteles, estudaram com os pensadores africanos”, diz ela — que também parece ignorar o fato de que Sócrates, Platão e Aristóteles nasceram quando o sistema teológico grego já estava estruturado. A Teogonia, obra de Hesíodo que descreveu a origem dos deuses, foi escrita mais de séculos antes de Sócrates.
Para obter os pontos dessa questão, os candidatos precisavam responder que os europeus apagaram a importância do Egito porque queriam “fundamentar a ética da escravidão na hipótese da inferioridade congênita dos africanos”.
Elisa Larkin Nascimento é doutora em Psicologia e o foco de sua pesquisa são os estudos de gênero e raça. Ou seja: nem de longe ela era a melhor pessoa para discorrer sobre as raízes da filosofia grega. Mas as distorções históricas servem a um propósito: sustentar a tese de que boa parte do conhecimento ocidental tem origem negra. “Estão sacrificando qualquer verdade histórica em nome de uma exaltação que não faz qualquer sentido”, diz o professor.
Tanto a obra de Silvio Almeida quanto a de Elisa Larkin Nascimento constavam da biografia indicada no edital do concurso.
Edital lançado por Tarcísio
A Gazeta do Povo procurou a Secretaria Estadual de Educação, que afirmou apenas que a responsabilidade pelo conteúdo da prova é da Vunesp.
A Vunesp ainda não respondeu à reportagem.
O concurso em andamento foi autorizado ainda em setembro de 2022, quando o governador era Rodrigo Garcia (PSDB). Mas a abertura do edital só foi feita em maio deste ano, já sob a gestão de Tarcísio. Apoiado por Jair Bolsonaro, ele chegou ao cargo com a expectativa de fazer uma gestão conservadora.
Concurso disputado
Mais de 295 mil pessoas se inscreveram para participar do concurso de professor na rede paulista de ensino — concorrência de quase 20 por vaga. Para o cargo de professor de História, são 28.836 inscritos disputando 720 vagas – 40 por vaga.
A seleção também tem vagas para professores de Artes, Biologia, Ciências, Educação Especial, Educação Física, Filosofia, Física, Geografia, Inglês, Matemática, Português, Química e Sociologia. O salário inicial para os professores de tempo integral (40 horas por semana) será de R$ 5.000.