Coração de Neon estreia em todo o Brasil; filme foi rodado em Curitiba


Pai e filho se dividem no comando de um carro de telemensagens, um velho Corcel 1 azul decorado com luzes de neon e um sistema de som, que circula pelas ruas do bairro do Boqueirão, em Curitiba. O sonho dos dois é levar o serviço de oferecer telemensagens de amor por encomenda aos Estados Unidos, mas uma tragédia mancha de sangue o sonho de vencer na América, enquanto revela uma espiral de violência de gênero e a visão que uma parte significativa das autoridades têm das periferias do país.

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“Coração de Neon”, o longa-metragem de estreia do diretor e
ator Lucas Estevan Soares (32), entra em cartaz no circuito nacional a partir
desta quinta-feira, 9 de março. Com orçamento de R$ 1,6 milhão (incluindo
custos de distribuição), foi feito sem financiamento público, com recursos levantados
pelo próprio diretor junto a apoiadores por meio da produtora IHC
(International House of Cinema, que também atua nos Estados Unidos), do qual é
sócio. “É 100% [cinema de] guerrilha”, afirma Lucas, que começou no teatro. E que
assumiu para si também a responsabilidade de negociar a distribuição do filme junto
às salas das principais capitais do país.

Fernando (Lucas) e o pai, Lau (Paulo Matos), pilotam o “Coração de Neon” ou “Boquelove”, o Corcel azul de mensagens românticas, como um negócio em família. Até que a violência atinge a ambos de forma devastadora e definitiva. E quando a trama, que começa com ares de filme “good vibe”, de músicas executadas ao violão e ruas iluminadas pelo sol, se transforma completamente.  Porque a violência que explode na tela encontra em um policial militar despreparado e mau caráter seu principal protagonista.

Sem aliviar e, ao mesmo tempo, sem ser apelativo, “Coração
de Neon” escancara a violência contra a mulher, uma realidade áspera e cruel, e
a luta diária da população dos bairros mais afastados.  Ao preferir o Boqueirão como locação em vez
dos manjados pontos turísticos de Curitiba, a história traz as questões a um
plano ainda mais real. O humor aplicado na trama não enfraquece o grito que uma
sociedade como a brasileira, em que a cada quatro horas uma mulher é vítima de
violência, precisa ouvir. O cálculo é do boletim Elas vivem: dados que não se calam, lançado na última segunda-feira
(6) pela Rede de Observatórios da Segurança, que registrou 2.423 casos de
ataques contra a mulher em 2022 – 495 deles, feminicídio.

“Coração de Neon”, informa Lucas, tem pretensões. Não se
trata de um filme de arte. A ideia é alcançar o máximo de espectadores possíveis
pelos cinemas do país, e quem sabe entrar em alguma plataforma de streaming
mais adiante. Para o diretor e ator, antes de tornar a história local demais, a
escolha por um bairro periférico para rodar o filme, e todas as gírias e
maneirismos empregados pelos personagens, universaliza a discussão, porque faz
conexões com jovens das periferias espalhadas pelo Brasil.

Ao utilizar todo o vocabulário das ruas do Boqueirão, o
clube de várzea local (e a rivalidade com outro time amador, em uma briga de
torcidas cenográfica que quase se tornou real) e personagens do bairro – um deles,
um morador de rua que não estava no roteiro, aparece e, de forma involuntária,
se apresenta como um grito paralelo a outro tipo de violência assistida
diariamente nas esquinas do país –, o longa transforma a região em uma espécie
de personagem coadjuvante. O elenco, formado quase que integralmente por atores
e atrizes curitibanos (a convocação para os interessados se deu pelo Instagram),
reforçou aspectos regionais e ajudou a imprimir à história boa dose de
verossimilhança – um antigo Corcel azul decorado com neon que distribui
telemensagens em pleno século 21 parece um tanto fantasioso.

Cinema de guerrilha

“Enxergo o cinema de guerrilha como o dos verdadeiros apaixonados, porque você arrisca suas finanças pessoais, pode entrar em grandes dívidas, mas é como qualquer empreendedor. Quanto mais alto seu sonho, mais você se arrisca”, avalia Lucas. Mas o diretor vê no modelo uma vantagem, que entende não teria se tivesse captado recursos via lei de incentivo: a liberdade. “Por mais difícil que seja produzir com poucos recursos, você tem total liberdade com a obra. Não fica engessado a nenhum modelo”.

O Corcel I azul decorado com neon, que dá nome ao filme, em cena pelas ruas do Boqueirão, em Curitiba. Foto: divulgação
O Corcel I azul decorado com neon, que dá nome ao filme, em cena pelas ruas do Boqueirão, em Curitiba. Foto: divulgação

“Consegui criar uma dinâmica e uma técnica de fazer os 2 ao
mesmo tempo que beirou até o surto”, explica Lucas sobre os papeis de diretor e
ator. “Porque em alguns momentos eu quase cheguei a surtar, mas na segunda
semana de produção eu já estava mais ligeiro para resolver alguns ‘BOs’ e
voltar para a cena”, acrescenta. No set, durante as filmagens, a equipe não
passava de 12 pessoas.  Lucas também
responde pelo roteiro e por boa parte da trilha sonora.

Para o diretor, esse modo ‘raçudo’ de fazer cinema, com poucos recursos e livre de fórmulas, é a essência do documentarista. “Coração de Neon”, detalha, é sua jornada empreendedora somada à experiência de ator, diretor e músico, tudo dentro de um único projeto.  A centelha da ideia surgiu em 2014, quando Lucas conta ter imaginado um carro de mensagens em uma perseguição. Graças aos trabalhos feitos com a IHC nos Estados Unidos, mais economias próprias guardadas – ele é casado com Rhaíssa Gonçalves, produtora executiva do filme – conseguiu recursos bancar o próprio filme. O roteiro foi escrito em 2018; as filmagens tiveram início no final de 2019, “mas veio a pandemia e a gente praticamente foi a falência”, conta. O longa foi concluído no ano passado e então tomou o circuito dos festivais.

Lucas deixa a modéstia de lado em conversas com jornalistas logo após a pré-estreia em Curitiba, no início de março. Vê “Coração de Neon” superior a algumas produções nacionais recentes que contaram com mais verba. Ele não está de todo errado. A estética do filme feito na raça, da câmera que corre ao lado dos personagens e parece querer se envolver nas tretas e nas cenas românticas, a qualidade do áudio e a fuga do fácil ao optar por um bairro suburbano em vez dos pontos turísticos da cidade fazem de “Coração de Neon” uma obra independente que pede um lugar nas listas de melhores de 2023.

Um spin off do longa, em forma de série, está em discussão, mas vai depender do sucesso do filme nas telas. Enquanto isso, o diretor já trabalha em uma co-produção Brasil-Argentina, ainda sem previsão de lançamento, sobre o orgulho da miscigenação.

“Coração de Neon é um bom filme”, sintetiza. “Tenho muito orgulho dele. Só que eu não tenho como controlar o gosto das pessoas, é sempre uma incerteza. Mas a reação que eu tive das plateias que viram o filme foi sempre positiva. E isso me dá mais medo ainda, porque gera expectativa”, assume. “Espero muito que pelo menos Curitiba abrace o filme como ele merece”.

“Coração de Neon” ocupa, a partir de hoje, dez salas de cinema em Curitiba. Para a programação completa, acesse o perfil do filme no Instagram.





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