Crise no IBGE reforça suspeita de controle político das estatísticas
Um ano após o economista petista Márcio Pochmann assumir a presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), emergiu uma crise interna da instituição, revelada pelo protesto público de seus servidores contra mudanças “arbitrárias e sem transparência” tocadas por sua gestão.
A inédita tensão entre um presidente do IBGE e técnicos do órgão defendidos pelo seu sindicato tornou explícita uma disputa pelo controle político dos números oficiais do país, prevista por críticos de Pochmann desde sua indicação ao cargo pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Na sexta-feira (20), o Sindicato dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatística (Assibge) convocou para esta quinta-feira (26), às 10h, um ato em frente à sede do IBGE, no Rio. A ação exige o fim da “postura autoritária” de Pochmann e diálogo sobre alterações no instituto.
A entidade contesta, entre outros pontos, o fim do trabalho remoto, mudanças de locais de trabalho, alterações no estatuto do IBGE, novo organograma gerencial e, sobretudo, a criação de uma fundação pública de direito privado, a IBGE+, também chamada pelos críticos de “IBGE paralelo”.
Fundação fortalece presidente do IBGE e garante contratações de assessores
Segundo o sindicato Assibge, a nova fundação foi divulgada de maneira superficial aos servidores só em 9 de setembro, quase dois meses após sua criação, sem informar como seriam preenchidos seus cargos. Após acessar o estatuto, o sindicato expôs “elevada preocupação” pelos riscos da IBGE+ para o IBGE.
O estatuto da fundação permite contratar funcionários pela CLT e ser financiada por parcerias com o Poder Público e a iniciativa privada. A IBGE+ será dirigida por cinco diretores remunerados, de livre nomeação, indicados pelo presidente do IBGE, sem precisarem ser servidores do instituto.
O Conselho Curador da fundação terá cinco membros remunerados e indicados “majoritariamente” pelo Conselho Diretor do IBGE, sendo que só um precisará ser servidor do instituto. A fundação poderá criar ainda número indefinido de cargos de assessores especiais de livre nomeação.
Presidente do IBGE rebate críticas de servidores e diz buscar a austeridade
Ao jornal O Estado de São Paulo, em 21 de agosto, Pochmann revelou que preparava a reorganização do IBGE para incorporar tecnologias e encabeçar o Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados (Singed), centralizando a análise de dados do governo. As declarações dele sobre o “novo IBGE” irritaram técnicos do instituto, que se sentiram ignorados.
Na segunda-feira (23), Pochmann disse em nota aos servidores que pedem sua exoneração que possui apoio dos ministérios da Gestão, do Planejamento e da Ciência e Tecnologia para promover mudanças no IBGE, sobretudo a criação do IBGE+, constituída com apoio da ministra Simone Tebet (Planejamento).
Sobre a fundação IBGE+, o comunicado da presidência do órgão afirma que ela foi criada para que o IBGE possa receber recursos adicionais para pesquisa e inovação tecnológica, sem ficar sujeitos às restrições obrigatórias do orçamento federal.
“A Fundação IBGE + permitirá o recebimento de recursos para atender a pesquisas ou projetos desenvolvidos com ministérios, bancos públicos e autarquias, antes impossível devido a dependência de ‘orçamento’, e poderá ser operacionalizada por meio dessa fundação de apoio. Nesses atendimentos os recursos absorvidos com a Fundação IBGE + serão retidos e obrigatoriamente revertidos para o Instituto”, diz a nota, que ressalta que a nova fundação obteve aprovação de “todos os órgãos de controle necessários” e que será fiscalizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Pochmann disse ainda que a transferência de servidores para outros locais se deve à necessidade de reduzir custos com aluguéis e integrar recém-aprovados no “maior concurso público da história do IBGE”. Ele ainda negou falta de diálogo, citando reuniões com o sindicato e apoio à sua pauta salarial.
Crise do IBGE ameaça plano para país reconquistar o grau de investimento, avaliam especialistas
Eduardo Galvão, diretor de relações institucionais da consultoria BCW, avalia que a crise interna do IBGE ameaça o plano do governo de reconquistar para o Brasil o tão almejado grau de investimento das agências internacionais de risco, condição essencial para atrair capital estrangeiro.
“O objetivo depende em boa parte da solidez de instituições de pesquisa e da confiabilidade dos seus dados. Mas a turbulência no IBGE gera incertezas quanto à sua capacidade de entregar dados confiáveis, fundamentais ao mercado financeiro, à indústria e à própria gestão pública. Se seus números forem questionados, o Brasil pode enfrentar sérias consequências”, alerta.
Possível manipulação de dados oficiais aproximaria o Brasil de países autoritários
Para o analista financeiro VanDyck Silveira, as mudanças em marcha no IBGE são embaraçosas ao sinalizar para métodos de controle das informações nacionais, algo que parece inspirado em países autoritários e inéditos em democracias. “Dados enfeitados ainda não surgiram. Mas surgirão”, adverte.
“É difícil de acreditar que um órgão da mais alta qualidade profissional como o IBGE esteja sendo apoderado politicamente pelo governo, a partir da criação de uma organização paralela. Tenho muita preocupação sobre como produzirão dados de emprego, inflação e Produto Interno Bruto”, disse.
O palestrante e conselheiro de empresas Ismar Becker considera ter sido “mais um tiro no pé” do terceiro governo de Lula dar respaldo aos planos estruturais de Pochmann, personagem identificado por sua militância partidária. “A partir do momento que ele entrou no IBGE, acabou a credibilidade”, resumiu.
Perfil político de Pochmann e “IBGE paralelo” prejudicam isenção de dados
Há um receio entre servidores e analistas de que possa acontecer a adoção por meio de uma estrutura paralela de metodologias de pesquisa para “melhorar” levantamentos, ou seja, manipular dados de acordo com objetivos políticos. Isso teria grande impacto por envolver o maior fornecedor de informações sobre o país, que serve a vários órgãos públicos e centros de pesquisa. O IBGE é, por exemplo, responsável pelo Censo e pelos índices de inflação.
Economista gaúcho com doutorado na Unicamp, Pochmann é autor de publicações que defendem estratégias de promoção de empregos e de industrialização e que questionam a importância do mercado financeiro. Ele também é um notório admirador do modelo de desenvolvimento chinês.
Pochmann se reuniu em 21 de setembro de 2023 com Dilma Rousseff na sede do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), em Xangai, na China, poucos meses após ela assumir a presidência do chamado Banco dos Brics. O encontro serviu para avaliar “possíveis parcerias” entre o NDB e o IBGE.
Expectativa de resistência de Tebet ao nome de Pochmann acabou frustrada
A ida de Pochmann para o IBGE despertou larga repercussão negativa de formadores de opinião, analistas e parlamentares, que temiam a reprise no Brasil da intervenção do casal Kirchner no “IBGE argentino”. Havia a expectativa de que a ministra Simone Tebet (Planejamento) resistiria a aceitar ao nome indicado para chefiar o órgão subordinado a ela, mas isso não ocorreu.
Entre os fatos citados para a sua rejeição está o de, como presidente do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) no governo Dilma, ele ter mexido na metodologia do órgão para definir as famílias do Brasil classificadas como de classe média, ampliando artificialmente o total desse grupo de renda.
Economista alerta para risco de crise no IBGE virar “a maior do governo Lula”
A economista Rita Mundim, conselheira de Política Econômica da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg), vê no alerta dos coordenadores e gerentes do IBGE uma “grave ameaça à credibilidade das estatísticas oficiais do país”. Para ela, essa crise interna do órgão pode virar a maior do atual governo de Lula.
Rita entende que a postura de militante partidário de Pochmann explica muitos estarem “apavorados” com uma postura enviesada dele à frente da instituição. Ele é ex-presidente da Fundação Perseu Abramo, núcleo pensante do PT. “O que um político engajado pode fazer com um órgão técnico?”, indagou.
“A escolha de Pochmann pelo núcleo duro do PT, apesar das contestações ao seu nome, já tinha gerado preocupação. Em plena era da informação, os dados são a coisa mais importante, pois eles geram conhecimento e apoiam decisões. Vamos ver o que vai ocorrer de agora em diante”, finalizou.
Lula mostra sintonia com Pochmann e apoia plano de “soberania de dados”
Pochmann participou de uma reunião ministerial de 8 de agosto como convidado especial, introduzido por Lula como “companheiro competente, respeitado não só na academia, mas na política também”. “É importante o governo saber como está o IBGE e dar condições para ele fazer muito mais”, disse.
No encontro, Pochmann destacou o papel do IBGE de “retratar o Brasil com informações necessárias ao exercício da cidadania”. Em seguida, apresentou o “projeto soberano” do Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados (SINGED), para “reduzir custos e ampliar a qualidade” de suas ações.
“O governo tem a chance de estabelecer novo marco na governança dos dados da nação por meio da integração metodológica e harmonização dos diferentes cadastros e registros sob a coordenação nacional do IBGE, conforme era entre os anos de 1936 e 1964”, afirmou o presidente do IBGE.
Lula esteve na posse de Pochmann no IBGE, em 18 de agosto de 2023, na sede do Ministério do Planejamento. Em março, recebeu o presidente do IBGE no Palácio do Alvorada para conhecer o plano de trabalho com propostas de modernização do instituto e a favor da “soberania de dados”.