Exigências da lei de igualdade salarial trazem risco jurídico para empresas



As exigências da “lei de igualdade salarial” entre homens e mulheres, proposta pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e aprovada pelo Congresso, estão trazendo dúvidas e transtornos para as empresas.

Para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, as imposições ampliam gastos com burocracia, que já estão entre os maiores do mundo, e expõem empresas idôneas a riscos jurídicos e danos à reputação. Além disso, representam uma interferência indevida e até autoritária do Estado nas relações de trabalho (leia mais abaixo, no tópico “Especialistas criticam parafernália e autoritarismo“).

Entidades que representam a indústria e o comércio solicitaram ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) o adiamento do prazo para as providências previstas na Portaria n.º 3.714, que regulamenta a lei.

Conforme a regulamentação, as empresas com mais de 100 empregados deverão fornecer informações sobre suas políticas internas de igualdade por meio do portal Emprega Brasil até o dia 29.

Com base nas informações e nos dados encaminhados mensalmente por meio do sistema e-social, o governo vai elaborar um “relatório de transparência salarial” que deverá ser divulgado amplamente no site ou canais institucionais de cada organização até o dia 31 de março. A publicação periódica do documento visa elucidar eventuais violações da equidade dos salários.

Caso deixe de fornecer as informações ou divulgar o relatório, o empregador será multado em valor equivalente a 3% da folha de salários, limitado a 100 salários mínimos. Caso o governo considere que houve caso concreto de discriminação salarial, a multa será de dez vezes o salário mínimo, conforme o artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O valor será elevado em 50% em caso de reincidência. Além disso, a lei estabelece indenização por danos morais ao funcionário prejudicado.

Aspectos concorrenciais e trabalhistas preocupam

O pedido de adiamento do prazo para a prestação de informações foi intermediado pelo Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD). Assinam o documento as federações das indústrias do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, além da Federação do Comércio do Rio Grande do Sul e Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul. O argumento é a necessidade de mais tempo para que as empresas possam atender às exigências sem enfrentar insegurança jurídica.

“Tivemos pouca discussão sobre o tema no âmbito empresarial e as obrigações têm prazo muito exíguo. Não está claro o que o MTE está objetivando, nem como as informações serão disponibilizadas e fiscalizadas. O receio é que a divulgação possa trazer litígios ou outro tipo de desafio para as empresas”, explica o advogado Rafael Reis, presidente do INPD.

Segundo ele, os principais pontos de preocupação dizem respeito à concorrência e à questão trabalhista. O relatório dará visibilidade aos parâmetros salariais e políticas internas. “O meu concorrente vai ter acesso à média salarial da minha empresa, vai saber quais políticas eu tenho, quais não tenho. É uma situação delicada que a gente precisaria estudar um pouco mais para entender as consequências”, diz Reis.

Segundo ele, estudos internacionais demonstram que a transparência de médias salariais, resulta, no longo prazo, na redução dos valores pagos aos trabalhadores.

Com relação à área trabalhista, acredita o advogado, são necessários critérios mais específicos. A lei tem como base a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), que não consegue captar todas as nuances entre os cargos de uma organização.

“Imagine uma situação onde o relatório de transparência identifica uma diferença salarial entre um homem e uma mulher. Por exemplo, uma diretora jurídica que ganha menos do que um diretor comercial. É uma diferença justificável, já que a área jurídica não traz faturamento para a empresa”, explica o advogado.

“A partir do momento em que isso fica público, pode surgir um clima ruim dentro das empresas, além de processos trabalhistas indevidos. As empresas precisam entender o limite desse relatório, até onde ele vai, e isso não está claro”, avalia.

MTE tenta esclarecer dúvidas, mas há lacunas

Para dirimir dúvidas a respeito do relatório de transparência, o MTE realizou no dia 7 uma transmissão ao vivo pela internet com representantes empresariais.

Segundo Reis, os representantes do ministério asseguraram a observância à proteção dos dados dos funcionários, uma preocupação central do INPD.

“A conversa inicial com o ministério esclareceu que o relatório vai conter somente diferenças salarias por porcentagem. Mesmo assim, há risco de exposição de informações em empresas menores, onde há poucas pessoas em cargos de gerência e direção. Os salários mais altos poderão ser identificados”, alerta. “Nós ainda não sabemos como o MT vai solucionar isso.”

Na live, o MTE informou que os auditores fiscais do Trabalho irão analisar as diferenças salariais existentes e que as empresas poderão fornecer dados adicionais para justificar quaisquer disparidades apontadas no relatório de transparência.

No entanto, um representante empresarial que acompanhou a transmissão, e conversou com a Gazeta do Povo sob a condição de anonimato, alerta que a possibilidade de justificativa é posterior. Ou seja, a empresa poderá se explicar somente após a divulgação do relatório e a aplicação de multa.

Segundo ele, os representantes do ministério deixaram claro qualquer diferença salarial, por menor que seja, será enquadrada como discriminação, sujeita a enquadramento e multa.

O presidente do INPD destaca que ninguém ainda teve acesso ao modelo de relatório final que será publicado pelo governo. “Também não foi feito um estudo de impacto dessas novas medidas. Daí a necessidade de garantir um período de transição adequado, que permita um debate público mais amplo e a realização de ajustes necessários”, afirma.

Especialistas criticam parafernália e autoritarismo

Na avaliação de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, as exigências da nova lei vão complicar muito o dia a dia das empresas.

“É uma parafernália, uma situação muito confusa que está sendo criada. Vai dar muita dor de cabeça para empregadores, empregados e profissionais de recursos humanos”, diz José Pastore, professor de Relações do Trabalho da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da FecomercioSP.

“São muitos detalhes e filigranas que podem compor as diferenças salariais e o potencial de geração de reclamação judicial criado é imenso”, afirma Pastore.

Segundo Pastore, a reforma trabalhista de 2017, no governo Michel Temer, já havia avançado em coibir a desigualdade de salários, estabelecendo critérios para definir o que realmente é discriminação no artigo 461 da CLT, que trata do assunto.

“É preciso avaliar se os funcionários têm a mesma carga horária, se trabalham no mesmo estabelecimento, no mesmo cargo, se fazem a mesma coisa e se têm o mesmo tempo na função”, explica. “Agora, como fica uma empresa que tem publicado no seu site que pratica salários diferentes entre homens e mulheres, sem as devidas distinções?”, questiona.

Hélio Zylberstajn, professor da FEA-USP e coordenador do Salariômetro da Fipe, classifica a iniciativa do governo de autoritária.

“É uma violência, um autoritarismo muito grande. A empresa vai ter de informar novamente ao governo dados que ele já tem pelo e-social, preencher um formulário com informações internas para o governo interpretar se existe ou não discriminação. E daí a empresa é obrigada a publicar no seu site um relatório elaborado pelo próprio ministério com critérios da CBO, genérica para muitas ocupações. É uma coisa horrorosa, uma interferência imensa nas relações de trabalho”, afirma.

O advogado trabalhista Eduardo Pastore destaca também a falha da metodologia de utilizar a mediana da CBO para a classificação de disparidades e prevê um aumento de judicialização. “O mais preocupante é o dano à reputação, com o tribunal virtual das redes sociais. A divulgação inadequada pode gerar retaliações e cancelamento injusto de empresas”, alerta.

Lei foi festejada, mas pode ter efeito inverso

A Lei nº 14.611/2023, chamada de “lei da igualdade salarial”, foi encaminhada ao Congresso pelo Executivo no ano passado dentro do pacote de medidas comemorativas do Dia Internacional da Mulher, 8 de março.

Questionada por parlamentares de oposição, uma vez que a igualdade de salários entre homens e mulheres já é prevista na CLT, a lei ampliou seu escopo englobando raça e etnia, aumentando significativamente as multas em caso de discriminação salarial comprovada. Também incluiu indenização por danos morais e criou obrigações de transparência às empresas.

Deputados e senadores aprovaram o projeto em tempo recorde, em junho de 2023, sob aplausos de parte da imprensa, de feministas e de entidades ligadas à defesa de minorias.

Apesar de concordar com o propósito de coibir a discriminação, o mercado sinalizou, desde a aprovação, que os efeitos esperados poderiam ser contrários pelo receio de ações trabalhistas. A preocupação ainda existe. “A lei acaba sendo complicadora e pode dificultar a contratação de mulheres”, avalia Zylberstajn.

Pastore destaca a possibilidade inversa. “Conversei com um diretor de hospital assustadíssimo com a nova regulamentação que revelou a intenção de só contratar mulheres e dispensar os homens em cargos de enfermagem”, conta.

Nem toda desigualdade salarial é fruto de discriminação

O ponto central da discussão, segundo os especialistas, diz respeito ao fato de que a maioria das diferenças salarias não se deve a discriminação, e sim às condições do mercado de trabalho, que privilegia a maior disponibilidade e flexibilidade de jornada.

“O mercado sabe que as mulheres, por conta das responsabilidades maiores com a casa e com os filhos, acabam tendo mais restrições. Isso não é discriminação. As empresas pagam mais para quem pode trabalhar em horas esquisitas”, diz Pastore.

A comprovação da tese foi demonstrada por Claudia Goldin, professora da Universidade Havard, que ganhou o prêmio Nobel de Economia em 2023 por seus trabalhos sobre mulheres no mercado de trabalho. Goldin, que passou sua vida acadêmica estudando o assunto, concluiu que os fatores sociais e culturais estão na base das diferenças dos salários entre os gêneros.

Em trabalho recente, a ganhadora do Nobel destaca o argumento da pesquisadora visitante da Universidade de Delaware Letícia Barbano, especialista em equidade de gênero e na relação entre maternidade e mercado de trabalho.

“Geralmente, os altos cargos que ganham mais ou são de liderança exigem uma jornada de trabalho muito longa, como viagens e reuniões fora do horário de trabalho. E as mulheres, principalmente quando se tornam mães, têm uma dificuldade de acompanhar essas longas jornadas de trabalho como fazem os homens”, escreveu Goldin, citando Barbano.

Segundo Goldin, com a maternidade, a mulher, nem sempre por vontade própria, acaba precisando se dedicar menos ao trabalho. Amamentação e o cuidado dos primeiros meses do bebê absorvem exclusivamente as mulheres, que evitam ocupações de longa jornada.

Para atenuar as diferenças, a economista propõe a promoção de uma cultura com mais flexibilidade de horário e menos tempo de trabalho para homens e mulheres.

Zylberstajn defende que, ao invés de criar novas imposições via leis, portarias e decretos, o governo poderia pensar em propor e regulamentar uma licença parental, igual para homens e mulheres.

Na avaliação de José Pastore, as questões sociais e culturais devem ser isoladas da discriminação. “Diferenças salariais são, na maioria das vezes, fruto das leis de mercado. E não há lei do Parlamento que consiga alterar uma lei de mercado”, afirma.



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