Haddad quer imposto global sobre super-ricos para combater fome



A criação de um imposto global sobre bilionários, defendida pelo Brasil em sua presidência temporária do G20 (o grupo das 20 maiores economias do mundo), provocou algum barulho e polêmica, apesar das dificuldades para sua concretização.

A proposta visa, por meio de instrumentos de cooperação tributária transnacionais, implantar a alíquota de 2% sobre grandes fortunas para financiar políticas de combate à pobreza mundial e aos impactos das mudanças climáticas.

No evento de pré-lançamento da Aliança Global Contra a Fome, no fim de julho, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu “justas contribuições em impostos” para os bilionários, “para que a pobreza e a desigualdade sejam enfrentadas globalmente”.

A defesa da taxação em escala mundial ocorre num momento em que o ministro se notabiliza internamente por seus esforços para encontrar novas formas de arrecadação que permitam ao governo cumprir a meta fiscal.

O episódio potencializou a alcunha de “Taxad”, que viralizou em memes nas redes sociais. Em 15 de agosto, o presidente Lula disse que o apelido se deve ao fato de o ministro “querer taxar os mais ricos” e defendeu a proposta no âmbito do G-20. “Rico não gosta de pagar imposto”, disse o presidente.

Para tributaristas e analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, apesar de legítima, a meta é ambiciosa e “inexequível”, já que não conseguiu sequer ser implementada no país.

“Primeiro, o Brasil teria de fazer a lição pela sua própria casa. Temos um artigo na Constituição que prevê o imposto sobre grandes fortunas, que até hoje, trinta anos depois, não está regulamentado”, diz João Eloi Elenike, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT). “Imagine em outros países, onde o governo não tem nenhum tipo de autonomia ou soberania.”

Proposta de imposto global sobre super-ricos atende à agenda da ONU

O imposto global é a espinha dorsal da Aliança Global contra a Fome, principal bandeira do Brasil à frente da presidência do G20, que vai até novembro deste ano.

Na prática, atende ao objetivo da Agenda da Organização das Nações Unidas (ONU), de eliminar a pobreza e a fome no mundo até 2030.

A discussão entre ministros de finanças e presidentes de bancos centrais dos países-membros do grupo se consolidou com o encontro em fevereiro, em São Paulo.

Desde então, Haddad tem se esforçado para ganhar adesões até o lançamento oficial da Aliança, na cúpula dos países-membros em novembro, no Rio de Janeiro.

Em junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reiterou a proposta do imposto global na conferência anual da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, na Suíça.  Em visita à Itália, no mesmo mês, o ministro Fernando Haddad apresentou a proposta ao papa Francisco e autoridades italianas.

Haddad prevê arrecadação de até US$ 250 bilhões baseado em “guru” francês

A última reunião sobre o tema foi justamente o pré-lançamento, no Rio de Janeiro, quando Haddad afirmou que é possível arrecadar de US$ 200 bilhões a US$ 250 bilhões por ano tributando menos de 3 mil pessoas em todo o mundo.

Haddad se baseia no estudo elaborado pelo economista francês Gabriel Zucman, diretor do Observatório Fiscal Europeu, a pedido do Brasil. Segundo o estudo, com uma alíquota de 3% sobre indivíduos com patrimônio superior a US$ 100 milhões seria possível gerar receitas às nações de até US$ 688 bilhões por ano.

Zucman, discípulo do economista francês Thomas Piketty, tem sido o principal formulador dos argumentos em defesa da tributação de grandes fortunas nos últimos anos.

Para ele, sistemas tributários que possibilitam que os super-ricos não paguem impostos levam à instabilidade política e à corrosão das instituições democráticas no longo prazo.

“Quando os super-ricos conseguem não pagar impostos, é o resto da população que paga, e isso é insustentável”, disse Zucman à BBC News Brasil em março. “Grande concentração de riqueza é também grande concentração de poder, o que corrói a democracia.”

Pouco depois, em abril, Zucman disse ao jornal O Globo que tributar bilionários e grandes multinacionais é “tarefa moral, econômica e política”.

EUA e Alemanha não querem imposto global sobre super-ricos

As discussões estão longe do consenso, mas alguns passos já foram dados. Ao fim do encontro no Rio de Janeiro, França, África do Sul, Espanha e União Africana manifestaram apoio à taxação.

EUA e Alemanha, por outro lado, se opuseram ao imposto global sobre super-ricos, defendendo que a tributação deve ser competência de cada país.

Sem acordo, a saída salomônica dos ministros de finanças dos países do G20 foi um termo de cooperação para a tributação das grandes fortunas.

“Respeitando plenamente a soberania fiscal, nos esforçaremos para cooperar a fim de garantir que as pessoas super-ricas sejam efetivamente tributadas”, diz o texto assinado pelas maiores economias do mundo.  

Imposto sobre fortunas costuma gerar evasão

A experiencia internacional não apresenta conclusões positivas sobre a cobrança de imposto sobre fortunas, que, em geral, leva à evasão de riquezas do país.

O imposto sobre grandes fortunas foi implementado em varios países europeus no século passado, mas já a partir dos anos 1990 foi extinto na Alemanha, Áustria, Dinamarca, Finlândia, França, Islândia, Itália, Países Baixos e Suécia.

Na Europa, a cobrança ocorre apenas na Espanha, na Noruega e na Suíça. Entre países latino-americanos, somente Uruguai, Colômbia e, mais recentemente, Argentina e Bolívia tributam o patrimônio dos mais ricos da população.

É exatamente para coibir a fuga das grandes fortunas que o imposto, segundo o ministro Haddad, precisa ser global. “Há um limite para atuação dos Estados nacionais”, disse o ministro ao defender a proposta num evento em Washington, em abril. “Sem cooperação internacional, aqueles no topo continuarão a evadir nossos sistemas tributários.”

Haddad busca protagonismo, diz tributarista

Para Elton Baiocco, da Farracha de Castro Advogados e professor de Direito Tributário do UniDomBosco, a hipótese de todos os países aderirem à iniciativa é praticamente utópica. “É um argumento muito frágil”, considera. “Em termos de coercibilidade jurídica no plano internacional, a ideia não parece factível.”

Segundo ele, o princípio de tributar os mais ricos “não é ruim”, desde que isso signifique tributar menos os mais vulneráveis. “As propostas não estão claras sobre os critérios de distribuição e como as políticas seriam implementadas”, avalia. “Precisaria ter um órgão gestor centralizado, tanto para o recolhimento quanto para aplicação.”

Para Baiocco, a proposta é “mais uma retórica demagógica em busca de protagonismo mundial”.  

A consultora Tatiana Migiyama, professora de Gestão Tributária da Fipecafi, destaca que o propósito do imposto tem convergência com os pilares que sustentam a estrutura do ESG (Enviroment, Social and Governance), mais especificamente quanto ao S de Social.

Mas ela destaca a diferença entre os sistemas tributários e a variação do conceito de riqueza entre as nações. “Cada país tem autonomia para definir sua política fiscal quando se trata de tributação de renda, da produção, da exportação, da importação, da herança e, em especial, do patrimônio”, pondera.

Além disso, a tributação sobre o patrimônio já existe na maioria dos países. “Sob o ponto de vista tributário, o patrimônio de todos, em especial, dos super-ricos, já é tributado pelo imposto sobre a renda, alguns mais e outros menos, pois as alíquotas do IR e a forma de tributação variam de país a país”, diz Migiyama.

Para ela, seria mais viável um tributo “one-off tax“, ou seja, uma tributação uma única vez. No Japão, por exemplo, no período pós-guerra, o imposto modelo “one-off” arrecadou mais de 10% da renda nacional no ano em que foi cobrado, incidindo principalmente sobre os 3% mais ricos da população japonesa. Mas em seguida foi abolido.

“Tributar patrimônio que já sofreu tributação poderia ser configurado como confisco. Será que se vingar este imposto mundial não estaríamos sujeitos à alegação de um confisco mundial?”, questiona Migiyama.

Além disso, a tributarista lembra a necessidade de uma “porta de saída”. “Um programa para erradicar a fome precisa ter metas para cada ano e tempo determinado de duração. Não é solução apenas dar o peixe”, conclui.



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