Jovem convive com 18 pessoas dentro do mesmo corpo: ‘É muito difícil aprender a controlar’ – Notícias



Giovanna Blasi, de 21 anos, tem repercutido nas redes sociais após contar que foi diagnosticada com TDI (Transtorno Dissociativo de Identidade) e convive com 18 identidades – contando com ela própria.


“Sofri algumas violências na infância, violências físicas, não foi sexual, e, por conta disso, comecei a dissociar [desconectar temporariamente da realidade vivida]. Só que elas [identidades] começaram a aparecer para mim como personagens na minha cabeça, porque tinham a sua forma de falar, o seu jeito, só não tinham nome”, lembra.



Aos cincos anos, a jovem conheceu a primeira identidade, chamada Momo, de cinco anos. A família, na época, acreditava se tratar de uma amiga imaginária.


“A Momo já surgiu com nome. Ela chegou falando na minha cabeça que o nome dela era Momo e ela foi a primeira identidade do sistema [como é chamado o conjunto de identidades]. [Depois], comecei a dar nome para elas de acordo com as características delas, porque, até então, elas não tinham um nome feito, eram chamadas ‘a psicóloga’, ‘a coisa’, ‘a estrategista'”, lembra Giovanna.


E esses “personagens” foram surgindo, como conta a jovem, “conforme fui sofrendo outros traumas”. Apesar de eles, no período, não assumirem a consciência, Giovanna relata que  “começaram a influenciar no meu jeito de falar, na minha forma de agir, etc”.


Todas as identidades e um breve resumo de cada estão listadas ao final.


A jovem passou anos sem compartilhar a situação com a família porque achava que poderia ter esquizofrenia ou borderline.


Fabiano de Abreu, mestre em psicologia, pós-doutor em neurociências pela Universidade da Califórnia e membro da Society for Neuroscience e da APA (American Philosophical Association), explica que o “TDI é um distúrbio psiquiátrico complexo, caracterizado pela presença de duas ou mais identidades distintas dentro de uma mesma pessoa. Elas são chamadas de alter egos ou estados dissociativos, e podem assumir o controle do indivíduo de forma recorrente, causando lapsos de memória, por exemplo”.


Segundo o especialista, a condição é um resultado de experiências traumáticas na infância, principalmente abuso físico, sexual ou emocional. A mente do indivíduo desenvolve um mecanismo de defesa, como a dissociação, para lidar com a dor e “proteger a integridade psíquica”.


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Há duas formas de apresentação do TDI. Na primeira, de acordo com Fabiano, “as identidades surgem como identidades externas, assumindo o controle da pessoa”. Na outra, há “uma mudança súbita na forma como percebem a si mesmas ou a sua identidade, sentindo-se como observadores passivos de sua própria fala”.


No caso de Giovanna, o TDI toma o controle. A primeira vez que uma das identidades assumiu a consciência foi quando a jovem tinha 17 anos e estava enfrentando um relacionamento abusivo.


“Uma das minhas identidades assumiu para me defender de uma situação, e foi a primeira vez, que eu lembro, que elas assumiram o corpo”, conta Giovanna.


Ela optou por “fingir que nada estava acontecendo” e não dar importância à situação. Isso perdurou até o ano passado, quando a jovem passou por situações de grande estresse.


“Estava de férias da faculdade, passando muito tempo em casa, muito presa, cheia de problemas para resolver, contas para pagar. Tinha acabado de perder o emprego, porque estava dissociando – a Momo vinha no front [consciência] enquanto eu estava indo para o trabalho, eu me perdia, chegava atrasada. E, no trabalho, comecei a trocar muito, e a gerente falou que eu estava com um comportamento que não dava para trabalhar na empresa, que eu tinha que me tratar – e eu sem entender nada do que estava acontecendo comigo”, relata.


A partir daí, ela começou a “trocar de identidade 14 vezes por dia, no mínimo”, ou seja, estava em crise dissociativa. Foi após o namorado perceber essas trocas constantes e, junto com os amigos e a mãe de Giovanna, a alertarem sobre a situação, que ela conseguiu dar os primeiros passos rumo ao diagnóstico.


A estudante de psicologia voltou a Atibaia (casa da mãe), onde recebeu o diagnóstico de TDI de uma psiquiatra. “Depois de três meses de tratamento na psiquiatra, [em novembro de 2022], de fato, deu o diagnóstico de TDI”, afirma.



O quadro é acompanhado de amnésia dissociativa (ela não consegue lembrar o que a identidade que está no front faz) e traços de depressão. Desde o início do tratamento, ela está afastada da faculdade e do trabalho para focar na terapia (feita com psiquiatra e neuropsicólogo, acompanhada de quatro tipos de remédio, dois deles sendo antipsicóticos).


“[Fui afastada] não porque as identidades são riscos para a sociedade – elas não são – o problema é que elas não podem vir em determinados ambientes e eu não tinha controle sobre as trocas”, informa.


Com o tratamento especializado, Giovanna parou de reprimir as identidades, passou a conversar com elas e a ter controle das trocas. No headspace, como é chamado o lugar na mente onde as identidades ficam (ela descreve como uma casa com quintal grande), a jovem consegue ter contato com todas.


Hoje, ela é a gatekeeper do sistema – forma que é denominada a identidade que tem controle sobre as trocas – que, após um consenso entre as 18 identidades, se chama “Sistema Resiliência”. 


Giovanna deixa claro que podem haver trocas involuntárias, a depender do estímulo externo (gatilho). Por essa razão, sua mãe, Cristhiane Lima, participa ativamente do dia a dia da filha e a ajuda a manter uma rotina.


“Todo mundo quer que eu tenha uma postura de internação, de dar remédios, que eu destrua o sistema nervoso dela. Eu notei que quando ela está mais tranquila, tem uma vida mais regrada, uma alimentação boa, está tudo bem, ela pode assumir as responsabilidades das atividades dela. Agora, basta ela ter um pouco mais de ansiedade que as identidade se aproximam ou ela deixa as identidades virem”, diz Cristhiane.


A mãe conversa com cada identidade e tenta ajudá-las da forma que é possível. “Fico preocupada porque eu não sou eterna. Quero que ela aprenda a conviver com isso para ela ter uma vida o mais tranquila possível, e que não fragmente mais”, pondera.


Tratamento


Hoje, a principal vertente de tratamento que Giovanna segue é com o neuropsicólogo, que faz um atendimento individual para cada identidade.


“No momento que entro na sessão conversamos um pouquinho e, depois, as identidades começam a assumir para conversar com ele, sobre as questões delas. Então, pelo menos, umas três vêm em cada sessão, porque todo mundo precisa de tratamento”, explica.


A jovem não tem ciência de como se sucede a sessão das identidades, por conta da amnésia, e também opta por não perguntar ao especialista. Ela fica sabendo apenas de detalhes importantes, como o fato de uma delas (Tata) ter autismo.


“Ele veio conversar comigo e disse: ‘olha, essa identidade tem traços autistas, ela precisa se tratar, precisamos cuidar dela, ela precisa de suporte'”, lembra.



Gabriel Okuda, psiquiatra do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, reforça que a principal forma de tratar a condição é com psicoterapia, para evitar crises dissociativas, e com medicamentos para os sintomas correlacionados ao TDI. O especialista também reforça que o suporte familiar é essencial.


“O apoio e compreensão das pessoas do seu círculo de convívio, família e amigos, é fundamental, pois alguns dias podem ser mais difíceis do que os outros. Saber lidar com a interação entre as identidades contribui para o processo de melhora do paciente”, complementa Abreu.


Mas nem sempre chegar a esses tratamentos é fácil, como lamenta Giovanna, já que o TDI é muito “inviabilizado pela sociedade”.


“Existe tanto preconceito e capacitismo em cima do TDI quanto de qualquer outro transtorno. Somos muito excluídos da sociedade acadêmica, das pautas médicas, porque ninguém quer estudar sobre o transtorno e, realmente, trazer tratamento para nós”, alega.


Mesmo diante das dificuldades, Giovanna reforça que a procura por tratamento especializado, em caso de algum sinal da condição, deve ser feita o mais rápido possível, para aumentar a qualidade de vida.


“Fragmentamos porque sofremos traumas, é doloroso e é muito difícil aprender a controlar. Eu sou uma pessoa controlada porque eu faço muito tratamento, mas imagina o sistema que não tem controle?”, indaga.


Segundo Gabriel, “normalmente, o transtorno gera um sofrimento para aquele indivíduo por diversos fatores, seja porque ele não tem conhecimento exatamente do que está acontecendo com ele, ou seja pela própria questão das dissociações, que envolvem essa mudança de identidade, que não são controladas pelo indivíduo, o que gera uma angústia muito importante, já que gera um descontrole”.



O psiquiatra recomenda que as pessoas que sofrem com lapsos de memória ou convivem com a sensação de estar observando a si mesmo de fora do corpo, por exemplo, estejam atentas à possibilidade de se tratar de TDI. Quanto mais rápido for o diagnóstico, menor o risco de o indivíduo desenvolver sintomas ansiosos ou depressivos, ou até mesmo vício em álcool e drogas – em uma tentativa de aliviar o sofrimento que o transtorno causa.


Para a sociedade em geral, Giovanna pede que todos procurem saber como as pessoas com sistema se comportam e convivem rotineiramente com o TDI, além de reforçar a necessidade de uma maior mobilização em busca de novas formas de tratamento para a condição.


“As pessoas precisam aceitar que a gente existe, e vai continuar existindo, na sociedade. Nós somos múltiplos e não vamos mais abaixar a cabeça”, afirma.


Uma forma de facilitar esse processo, segundo Giovanna, é criar um cordão de identificação para o TDI, como existe para o TEA (Transtorno do Espectro Autista). “A gente precisa ser protegido socialmente”, reitera.


Conheça cada identidade


Abaixo, Giovanna (primeira identidade do corpo) descreve as características mais marcantes de cada identidade e suas particularidades.


“A coisa” ou Tata – “é uma das minhas identidades que foi diagnosticada recentemente com traços autistas muito notórios, muito graves, de nível 1 a 2 de autismo. Ela foi uma identidade que surgiu para me proteger de algumas violências, então ela é a trauma holder, ou seja, ela carrega todos os traumas, de todo mundo do sistema. Ela tem 14 anos e é muito dócil, muito medrosa, não gosta muito de algumas coisas. […] Ela tem um dialeto próprio, que ela mesmo inventou, e está aprendendo a falar português agora”.


Aline – “é a psicóloga do sistema, guarda todos os meus conhecimentos relacionados à faculdade de Psicologia, que fiz até o 4º ano e vou voltar, se Deus quiser. Ela é muito calma, muito estável, fala baixo, gosta muito de dar conselhos e é muito comunicativa. Aline tem 29 anos e envelhece [muda de idade]”.


Ariel – “foi o último do sistema que surgiu [faz um mês e meio], tem 25 anos e envelhece. Ele tem um jeito muito próprio, é homossexual e é homem. É muito carismático, gosta muito de acolher as pessoas e a característica dele é ser o organizador, então ele organiza as atividades laborais das meninas, a minha rotina e a das meninas, e como vamos fazer um circuito para fazer tudo dar certo”.


Aurora – “é uma identidade muito gentil, mas é meio sonsa, difícil e um pouco mentirosa – tem que tomar cuidado com as coisas que ela fala. Mas ela é muito dócil, é artista, então gosta de pintura, gesso, artesanato, cantar, fazer teatro, gosta de tudo que é relacionado à arte. Ela tem 19 anos e estamos vendo se vai envelhecer ou não”.


Ayana – “Tem 35 anos e carrega a religiosidade do sistema. É uma das identidades que envelhece, a Tata e a Momo não envelhecem. Ela é muito didática, muito acolhedora, muito mãezona, autoritária, então tem uma personalidade bem forte.”


Dandara – “é a protector do sistema – a que protege o sistema de ameaças. Ela tem personalidade antissocial, foi diagnosticada pelo neuro como personalidade antissocial, e não tem sentimentos, não sente nada. Mas não apresenta risco à sociedade, não é criminosa, só é uma pessoa muito fria. Ela é comunicativa, gosta de conversar, mas depende da pessoa. Ela tem 28 anos e envelhece”.


Dean – “tem 12 anos e é mudo, mas não é surdo. Ele não consegue se comunicar falando, então se comunica por sinais – estamos pensando em fazer um curso de Libras para ele poder se comunicar com as pessoas. Ele é responsável por esvaziar a minha mente, então consegue excluir lembranças que não me fazem bem, é muito dócil, muito gentil e não envelhece”.


Hebert – “é a personificação da minha raiva. Tem uma voz bem grossa, tem 15 anos e não envelhece. Ele é muito engraçado, é comunicativo, gosta de conversar, mas guarda muita raiva, só vem para impor limites, para falar que não gosta de certas coisas, que tem de mudar certas coisas no sistema, que tem de mudar alguma coisa na convivência com os outros, é muito autoritário”.


Isabella – “é uma identidade muito ansiosa, treme muito, fala muito rápido e é a estrategista do sistema. Então ela faz todas as planilhas de organização, de rotina, de atividades laborais, faz um monte de planilha. Ela é super controladora – tem que estar tudo no controle dela, se não ela surta. Ela tem 18 anos e não envelhece”.


Laura – “é a fitness do sistema. Ela surgiu na época em que eu não conseguia fazer as coisas de casa. Então ela é muito viciada em limpeza e é um pouco hipocondríaca – tem mania de sempre achar que estamos doentes, que precisamos nos entupir de remédio. Ela gosta muito de exercício físico, musculação, comer saudável, é muito focada, muito diferente de mim, inclusive. A Laura tem 24 anos e envelhece”.


Lina – “é uma identidade muito relacionada à inteligência: é muito culta, é muito autoritária, muito séria. É muito difícil alguém tirá-la do sério, ela é muito calma. Ela é muito inteligente, então guarda todos os meus conhecimentos, de tudo que já estudei na vida. Ela tem 27 anos e envelhece – quando eu fizer 22 anos, provavelmente, ela fará 28 anos”.


Luara – “é a TDAH [Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade] do sistema. Ela é muito avoada, muito distraída, tem um jeito muito lento de falar. Ela é muito comunicativa, muito legal, super acolhedora, gosta muito de ouvir as pessoas, e mais ouve do que fala, só que é muito distraída, então, provavelmente, ela vai falar com você, vai olhar para o teto e vai começar a falar do azulejo, da mosca, enfim, mas não é de propósito. Luara tem 21 anos e, até onde sabemos, não envelhece”.


Lua – “é a psicótica do sistema, ou seja, sempre acha que está sendo perseguida por alguma coisa, [acha que] vê e escuta vozes. Como o próprio nome diz, vive no mundo da lua. Ela tem 17 anos e não envelhece”.


Luísa – “é a identidade sensual, gosta de dançar, fazer pole dance, gosta de se comunicar com as pessoas. Ela é muito festeira, gosta de rolê, então achamos que, em algum momento, vai parar de envelhecer [tem 24 anos], porque, normalmente, quando ficamos mais velhos, não temos mais vontade de fazer certas coisas. A Luiza é muito comunicativa, muito engraçada e muito sensual – é muito notório que não sou eu”.


Maria Helena ou “Leninha” – “tem 17 anos e não envelhece. Ela é muito depressiva, porque guarda todos os sentimentos do sistema. Então ela sente as coisas de maneira muito intensa, chora muito, é super acolhedora, gosta de ouvir as pessoas. Ela é muito comunicativa, mas gosta mais de ouvir do que de falar”.


Melanye – “é muito explosiva, sempre está estressada. Mas ela é muito engraçada e todo mundo gosta muito dela, porque ela fala as coisas na lata, não tem paciência. Ela fala muito rápido, é muito engraçada. A Melanye tem 23 anos e envelhece diferente das demais, a cada três anos”.


Momo – “tem cincos anos, e é uma criança muito alegre, muito feliz, é um pouquinho ciumenta, um pouco arteira, e faz muita intriga – ela gosta de fofoca. Mas ela é muito gente boa e é uma criança maravilhosa, gosta muito de receber atenção”.



*Sob supervisão de Giovanna Borielo


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