No México, o narcotráfico prosperou com ajuda do Estado – Notícias
Recentemente, Natalie Kitroeff e Ronen Bergman, meus colegas do Times, publicaram uma matéria que usou um vasto armazenamento de mensagens de texto, registros de investigação e outros documentos secretos para lançar luz sobre um dos casos sem solução mais notórios do México: em 2014, 43 estudantes universitários desapareceram depois que a polícia parou seu ônibus, obrigou-os a entrar em viaturas e os entregou a um cartel de drogas. Nunca mais houve notícia deles.
O ato chocou a nação, não apenas pelos desaparecimentos, mas também em razão das dúvidas que suscitou sobre os envolvidos. Afinal, como Natalie e Ronen escreveram, “como um grupo criminoso relativamente desconhecido conseguiu cometer uma das piores atrocidades da história recente do México, com a ajuda da polícia e do Exército, que assistiram ao sequestro em massa em tempo real?”.
Como eles [os jornalistas] documentaram minuciosamente, a resposta é que o cartel, conhecido como Guerreros Unidos, estava colaborando com praticamente todos os ramos locais do governo mexicano, incluindo o Exército. A gangue tinha efetivamente todos os recursos do Estado à sua disposição.
• Compartilhe esta notícia no WhatsApp
• Compartilhe esta notícia no Telegram
Segundo especialistas, esse nível de conluio pode ser exclusivo do estado de Guerrero (uma das unidades federativas do país, localizado na costa sudoeste), onde a longa história do tráfico de drogas e uma presença militar intensa teriam criado terreno fértil para essas relações. Mas, no México, as fronteiras entre as organizações de narcotráfico e o governo são difusas há muito tempo, afirmam estudiosos. E isso teve profundas consequências, não apenas para o crime organizado, mas também para o desenvolvimento do próprio Estado mexicano.
Construção criminosa do Estado
“Na verdade, não existe uma divisão entre cartéis ‘maus’ e Estado ‘bom’. Acredito que aqueles que, como eu, trabalham sobre a história do narcotráfico no México do século 20 dirão que ele verdadeiramente emerge dentro dos limites do Estado mexicano, particularmente durante o longo domínio do PRI (Partido Revolucionário Institucional), que esteve no poder de 1949 a 2000”, disse Alexander Aviña, historiador do estado do Arizona (EUA), que estuda o tráfico de drogas naquele país.
No imaginário popular, a colaboração entre cartéis e oficiais do Estado geralmente assume a forma de corrupção: os criminosos pagam subornos a oficiais, que passam a permitir o tráfico de drogas em troca de riqueza pessoal. Mas essa narrativa não se aplica completamente ao México, afirmou Benjamin T. Smith, professor da Universidade de Warwick, no Reino Unido, autor de um livro sobre a história do narcotráfico mexicano.
Para ele, existe uma longa história de oficiais mexicanos que recebem dinheiro de traficantes de drogas para financiar o governo, e não apenas subornos pessoais. Ele descreveu isso como uma espécie de “construção criminosa do Estado”. Mas, posteriormente, “essa [prática] se mostrou perigosamente frágil”.
Smith informou que documentos da década de 1940 mostram que a polícia no estado de Sinaloa (no oeste do México), por exemplo, extorquia os produtores de ópio, mas depois entregava o dinheiro aos arrecadadores de impostos estaduais para ser depositado nos cofres públicos.
Mais tarde, com o aumento da demanda por drogas nos Estados Unidos na década de 1970, o que tornou o comércio muito mais lucrativo, os funcionários federais assumiram o controle da polícia estadual, muitas vezes com violência. Mas os traficantes continuaram pagando pela proteção estatal, e esse dinheiro era usado, pelo menos em parte, para financiar operações do Estado.
Em uma entrevista à rádio americana NPR em 2000, Guillermo González Calderoni, na época alto oficial de narcóticos da polícia federal mexicana, descreveu o trabalho da agência como “pegar o dinheiro de alguns traficantes para lutar contra outros traficantes”. (Alguns anos depois da entrevista, ele foi assassinado a tiros.)
Esse sistema foi possível, em parte, por causa da estabilidade política proporcionada pelo regime de partido único. “O sistema democrático no México só se abriu completamente nos anos 2000. Quando se tem um governo de partido único, é muito fácil fazer conluio com os cartéis, porque há muita estabilidade”, explicou Rachel Nolan, historiadora da Universidade de Boston, que estuda a violência e os conflitos na América Central.
Mas depois as coisas começaram a mudar. O PRI, cujo regime unipartidário havia permanecido no poder durante dezenas de anos, começou a se dividir nas décadas de 1990 e 2000, abrindo caminho para a democracia e uma nova competição política.
Ao mesmo tempo, houve uma mudança no narcotráfico: os pequenos traficantes se consolidaram em grandes cartéis, que passaram a controlar as principais rotas de contrabando, disse Smith. O tráfico de drogas e o Estado ainda estavam intimamente interligados, mas os traficantes agora tinham mais poder do que antes. Smith completou: “É uma tensão que existe até hoje. Quem está no comando, quem está sob controle?”
Os especialistas com quem conversei alertaram que não se deve tirar conclusões muito amplas do acervo de mensagens de texto sobre o desaparecimento e o assassinato dos 43 estudantes. Elas não são prova de que funcionários ou agências estatais, especialmente em outras regiões do país, estejam envolvidos no tráfico de drogas ou no crime organizado.
Mas, segundo afirmam, os cartéis não podem ter sucesso sem a ajuda do Estado. “Ninguém se tornou totalmente autônomo. Isso nunca funciona”, disse Smith.
‘O recurso escasso é a proteção do Estado’
A complexa dinâmica de poder entre o cartel Guerreros Unidos e os diversos ramos do Estado mexicano é claramente evidente nas mensagens sobre os assassinatos de 2014. Os membros do cartel parecem tratar a polícia local quase como subordinada. Um socorrista de emergência se referiu a um líder dos Guerreros Unidos como “chefe”, enviando a ele atualizações a cada minuto sobre as ações das forças de segurança.
Por outro lado, algumas das conversas dos membros do cartel sobre o Exército pareciam menos certas: em algumas mensagens, eles reclamavam das exigências do Exército, enquanto em outras descreviam que dependiam dos militares para manter os rivais fora de seu território.
Esse é o paradoxo do tráfico de drogas: a fraqueza do Estado e sua incapacidade de controlar as próprias forças de segurança permitiram que os cartéis prosperassem. Mas, ao mesmo tempo, o acesso ao poder estatal, especialmente ao poder coercitivo das forças armadas e da polícia, é um dos recursos mais valiosos que um cartel pode controlar.
“Outra narrativa que temos ouvido sobre o México, pelo menos desde 2017, é que ele está potencialmente falido, e que essas organizações de narcotráfico são mais poderosas que o Estado. Acho que essa é uma maneira muito equivocada de ver isso. O recurso escasso, ou o bem escasso, nesse caso, é a proteção do Estado”, observou Aviña.
A proteção do Estado, claro, era ainda mais escassa para os civis comuns que não tinham nenhuma proteção contra a violência dos cartéis.
Veja também: Idosa que teve a morte decretada é constatada como viva em funerária
As mensagens sugerem que os 43 estudantes foram essencialmente vítimas de um caso de erro de identidade. Eles tinham tomado o controle de vários ônibus de passageiros para participar de um protesto na Cidade do México, prática que, havia muito tempo, era tacitamente tolerada pelas autoridades locais. Mas os ônibus pareciam semelhantes aos usados para contrabandear drogas para os Estados Unidos, de acordo com os investigadores.
O cartel, paranoico com possíveis invasões em seu território, confundiu-os com membros de um grupo rival e ordenou à polícia — os mesmos agentes que deveriam proteger cidadãos como os estudantes — que os atacasse.
Os documentos mostram que, dias depois do desaparecimento dos estudantes, quando alguns ainda poderiam estar vivos, o Exército sabia a localização de dois suspeitos do ataque, mas não interveio. “Em vez de procurar nossos filhos ou nos dizer a verdade, eles se protegeram”, disse ao Times Cristina Bautista Salvador, mãe de um dos desaparecidos.