“Prateleira de terras” de Lula é cara e não resolve miséria no campo


O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) está correndo contra o tempo para apresentar nas próximas semanas os detalhes de um novo projeto de assentamentos rurais no país, que atenda a determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de se criar uma “prateleira de terras improdutivas” em parceria com os estados.

Em meio a críticas e desgaste político devido à retomada de invasões de terra por parte de seus aliados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Lula teve seu “momento eureka” sobre o tema na live semanal “Conversa com o Presidente”. “Por que a gente tem que esperar o movimento invadir uma terra para mandarmos o Incra avaliar se ela é produtiva ou improdutiva para desapropriarmos? Por que o Estado não monta uma prateleira de projetos de terras improdutivas? Faz um convênio com as secretarias dos estados e apresenta à União um banco de terra disponível. Em vez das pessoas invadirem, a gente oferece, organiza. Essa é uma novidade que eu não pensei no primeiro e segundo mandato. Pensei agora e nós vamos fazer”, disse Lula.

A “novidade” pretendida por Lula representa, na verdade, o retorno a um modelo de reforma agrária adotado até o início dos anos 2000, mas abandonado após se tornar inviável frente à nova realidade competitiva da agropecuária brasileira. De 1995 a 1998 cerca de 72% dos assentados receberam lotes de terras desapropriadas pela União, a partir de declaração de improdutividade e desapropriação. De 2003 a 2006, já no primeiro governo Lula, a escassez de áreas improdutivas obrigou que 71% das famílias passassem a ser assentadas em imóveis comprados pelo governo, o que encareceu a operação em 70%.

Prateleira de terras vai exigir bilhões de reais

Para formar a tal prateleira de terras, será preciso muito dinheiro do Tesouro. Em 2005, o custo médio para assentar cada família de sem terra no país estava em R$ 65 mil, o que incluía, além do preço da terra, os gastos com servidores e a implantação do projeto. Em 2018, o valor somente de aquisição da terra chegou a R$ 108,9 mil, o que, em valores corrigidos, representa hoje R$ 145 mil. Somando-se os custos operacionais de infraestrutura, implantação e gerenciamento, o custo total de cada assentado está atualmente em R$ 217 mil. Daria para pagar um salário mínimo para cada família assentada por 164 meses, ou 13,7 anos. Em comparação, a renda agrícola líquida estimada nos assentamentos está em R$ 3.455 por ano, ou R$ 288 por mês.

Durante a audiência da CPI do MST em que o ex-presidente do Incra, Xico Graziano, apresentou esses dados, o relator da comissão, deputado Ricardo Salles (PL-SP), questionou se vale a pena retomar uma reforma agrária com tal custo-benefício. “Estamos colocando dinheiro público, gerando expectativa para essas pessoas, fazendo todo um movimento que atinge a estabilidade jurídica da propriedade no Brasil, para fazer que esses assentados ganhem R$ 288 por mês. É uma coisa que não faz sentido”, enfatizou Salles.

Se valer a conta do MST de que existem hoje 100 mil famílias acampadas no país à espera de um lote de reforma agrária, o custo para assentar a todos chegaria a R$ 21,7 bilhões.

Propriedade de assentado da reforma agrária em Flores de Goiás (GO), titulada no governo Bolsonaro
Propriedade de assentado da reforma agrária em Flores de Goiás (GO), titulada no governo Bolsonaro| Divulgação / EBC

Vida miserável nos assentamentos

A taxa de evasão média nos assentamentos
está em torno de 30%, podendo, em locais mais distantes, alcançar 50% e até
70%. E a maioria das famílias assentadas, 64,3%, se encontra no bioma
amazônico, enquanto outras 12,1% estão na caatinga nordestina. “É inequívoco, a
vida dos assentamentos de reforma agrária não é uma vida fácil. É uma vida
miserável, o poder público não consegue, por mais que se esforce, dar as
condições. Às vezes são assentamentos distantes das áreas de produção, a tecnologia
não chega lá, o que faz com que aquela família desista. É um problema grave,
que a meu ver se resolveria por uma seleção mais técnica, mais criteriosa, que
poderia ser feita por meio de cursos e treinamentos que não temos”, afirmou Graziano
à CPI.

Essa realidade foi confirmada por um
estudo do Incra em 2022, com base no Censo Agropecuário de 2017, que mostrou
que no bioma amazônico, em praticamente todos os municípios que possuem assentamentos
de reforma agrária, a renda média das famílias assentadas é de meio salário
mínimo por mês.

Para o presidente do Incra no governo Bolsonaro, Geraldo Melo Filho, qualquer nova política de assentamento não pode ignorar essa realidade de extrema pobreza. “Você desloca essas pessoas para um local longe da infraestrutura urbana, onde não tem hospital, não tem segurança, não tem educação. Ou seja, complica inclusive a vida dos municípios. Coloca as pessoas na terra e não dá condição para produzirem. Elas têm essa renda, que na verdade é uma não renda, e você termina tendo que dar a essas pessoas um tipo de suporte, de assistência e de programas sociais, que não fazem sentido. Não compensa o investimento de tê-las colocadas no meio rural”, enfatiza.

Terras devolutas, na maioria, estão na Amazônia

Não se cria uma “prateleira de terras”,
como quer Lula, sem elevados gastos. Para Melo Filho, achar grandes áreas improdutivas
no Centro-Sul é uma tarefa difícil, devido à valorização das terras. “Ninguém
tem um bem tão valorizado e deixa de produzir por opção. Normalmente tem algum
problema como espólio, partilha de bens, alguma disputa. E mesmo que você encontre
um valor significativo de terras improdutivas após vistorias, tem um outro
problema principal. Você vai precisar de orçamento. Essas terras não são
simplesmente tomadas pelo Estado. É um bem privado como qualquer outro, precisa
ser pago”, sublinha.

A saída, então, poderia estar nas terras devolutas da União? Sim, se for o caso de mandar quase todo mundo para a Amazônia. Mas a maioria das pessoas que pretendem ser assentadas está em outras regiões. “Essas pessoas que sonham com seu pedaço de terra estão dispostas a se mudar para a Amazônia, para receber um lote onde só vão produzir em 20%? Não é questão de ter apenas a terra. É a terra estar disponível onde você eventualmente tem essa demanda qualificada”, afirma Melo Filho.

Geraldo Melo Filho foi presidente do Incra no governo de Jair Bolsonaro
Geraldo Melo Filho foi presidente do Incra no governo de Jair Bolsonaro| Valter Campanato/Agência Brasil

O ex-dirigente do Incra observa que desde 1994, no governo de Fernando Henrique Cardoso, já foram feitos cerca de 3.500 assentamentos de reforma agrária no Norte do país. “Estamos falando de quase dois milhões de pessoas colocadas na zona rural da Amazônia para produzir sem estrutura, sem nenhum apoio, e que hoje enfrentam todo tipo de dificuldade. Então, vai ampliar isso? A gente sabe o que acontece: sem condições de produção, de escoamento da produção, essas pessoas vão terminar aumentando o desmatamento. Não sei se é isso que o governo pretende fazer”, sublinha. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), a reforma agrária contribuiu com 25% a 30% do desmatamento da Amazônia entre 2003 e 2014.

Reforma agrária com base no MST é “receita de fracasso”

Para Xico Graziano, o governo vai encontrar terras improdutivas apenas em regiões ambientalmente frágeis, cobertas por floresta ou com caatinga. Na realidade atual, já não caberia mais uma reforma agrária distributivista. “Se for uma reforma agrária baseada em invasor de terra, tipo MST, é receita de fracasso na certa”, afirma.

Uma hipótese factível, contudo, seria fomentar a agricultura praticada por técnicos agrícolas ou filhos de produtores desempregados. “Malásia e Indonésia fizeram isso. Decidiram ampliar a produção de dendê, os governos fizeram projetos e selecionaram pessoas para fazer isso. Não é dar um pedaço de terra e dizer para a pessoa se virar, criar galinha, pato ou cavalo, ou arrendar para um vizinho. São projetos com começo, meio e fim. Jamais baseados em invasores de terras, em bandidos agrários”, afirma.

O governo de Jair Bolsonaro gastou R$ 6,2 bilhões para pagar precatórios de indenização de terras da reforma agrária pendurados por governos anteriores. Melo Filho alerta que o governo Lula revogou o Memorando 01 do Incra de 2019, que estabelecia que para iniciar qualquer processo de desapropriação, seria necessário primeiro apontar a fonte do recurso existente. “Está-se criando o ambiente exatamente para voltar a fazer o que era feito. Ou seja, ‘comprar’ terras sem que haja de fato orçamento ou recurso para pagar esse investimento. E isso não pode. O artigo 1516 da Lei de Responsabilidade Fiscal diz que mesmo para emissão de precatório, tem que ter orçamento”.

Mais terras em assentamentos do que na produção de grãos

Melo Filho destaca que o foco do governo
anterior foi dar condições dignas para famílias que há dezenas de anos estavam
nos assentamentos. “A reforma agrária é um conjunto de ações, que normalmente
se inicia com a desapropriação e a criação de assentamentos, mas passa pela
infraestrutura, pelo desenvolvimento do assentamento e sua consolidação. Isso está
no Estatuto da Terra, no artigo 64, não é invenção minha. O governo passado
continuou pagando as contas anteriores dessa parte inicial da criação e projetos
de assentamentos, porém investiu na parte de desenvolvimento e consolidação. Com
a titulação, investimentos e infraestrutura. Esse foi o foco, tentar melhorar a
qualidade de vida e a produção para quem já está assentado”, aponta.

Ao longo dos últimos 40 anos, o Brasil assentou quase 1 milhão de famílias pela reforma agrária numa área de 87 milhões de hectares. É mais do que todo o espaço ocupado pela safra de grãos brasileira, atualmente em 64 milhões de hectares.

Contatado para detalhar como será o projeto de “prateleira de terras” encomendado pelo presidente Lula, e para informar se já existe algum estoque disponível, o Incra disse apenas que “essas informações serão detalhadas quando do anúncio das ações de retomada do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA).” E que a divulgação “ocorrerá em breve”.



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