“Rapsódia em Agosto” é lembrete da outra ponta da bomba atômica
Nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, há 68 anos, eram lançadas as bombas atômicas Little Boy e Fat Man sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, respectivamente. Mesmo que a idade dos acontecimentos não seja “redonda” em 2023, o assunto tem sido debatido com o lançamento de Oppenheimer nos cinemas. O novo filme do diretor Christopher Nolan retrata a história e a dualidade do criador da arma responsável por matar cerca de 210 mil pessoas, o físico J. Robert Oppenheimer. Como a produção não avança para abordar o efeito da bomba no povo japonês, é salutar relembrar a existência de Rapsódia em Agosto, dirigido pelo cineasta Akira Kurosawa.
Recém-chegado à plataforma de streaming Lumine, o longa-metragem foi lançado em 1991 e acompanha o encontro de três gerações de uma família japonesa afetada pelo ataque em Nagasaki. O fio condutor da história é Kane, a avô da família e viúva, que perdeu seu marido para o “brinquedo mortal” de Oppenheimer, como bem caracterizou o cantor Sting em uma de suas músicas.
A senhora de 86 anos, já com problemas de memória e saúde, recebe seus quatro netos que não conhecem muito bem o impacto do acontecimento histórico. Conforme vão tendo mais contato com ela e com o ambiente em que tudo aconteceu, os jovens se conectam cada vez mais aos bombardeios, especialmente com a aproximação dos eventos memoriais, realizados anualmente pelo Japão em agosto. Como resultado, também questionam a moralidade dos Estados Unidos por terem utilizado esse recurso para “encerrar” a Segunda Guerra Mundial.
Mais à frente, Rapsódia em Agosto ganha outro personagem para enriquecer seu enredo. Clark, o sobrinho de Kane (interpretado por Richard Gere) que foi criado nos EUA, decide também visitar a matriarca e extirpar a culpa que carrega pelo bombardeio, na condição de meio americano. É com sua chegada que o espectador consegue enxergar, por meio da ótica de um visitante, os eventos memoriais e como estes são um reflexo do peso carregado pelo povo japonês.
Feridas difíceis de cicatrizar
Com a progressão da película, vai ficando evidente que Kane está perdendo sua noção de presente e passado. A senhorinha passa a deixar as roupas do marido em um canto, como se ele fosse voltar para vesti-las. O amor pelo falecido e o trauma da explosão começam a tomar cada vez mais conta de sua persona.
O ápice dessa confusão mental se dá quando uma forte tempestade chega na região em que ela mora. A avó pensa que o evento climático é uma perturbação atmosférica que presenciou quando a bomba atômica atingiu Nagasaki. Arrasada com isso, protege seus netos e sai com apenas um guarda-chuva, achando ser capaz de salvar seu marido contra o atentado.
Em nenhum momento o longa apresenta uma pessoa sendo desintegrada pelo lançamento da Fat Man, mas é um complemento cinematográfico digno para quem se incomodou com a ausência de algo do tipo em Oppenheimer. Ver a determinação da idosa em enfrentar a chuva torrencial é de cortar o coração.
“Não filmei cenas chocantemente realistas, pois seriam insuportáveis, além de que não explicariam o horror vivido”, contou Kurosawa em uma entrevista dada ao escritor Gabriel García Márquez, em ocasião do lançamento de Rapsódia em Agosto. “Quis transmitir o tipo de ferida que a bomba atômica deixou no coração de nosso povo e como elas gradualmente começaram a cicatrizar”, resumiu sobre sua decisão artística.