Reforma tributária complica regime de impostos nos primeiros anos



O caminho da transição para o novo regime tributário, previsto na regulamentação recém-aprovada pelo Congresso, será marcado por pressão inflacionária, turbulência e insegurança na gestão de dois sistemas completamente distintos. Por isso, embora a reforma tributária tenha buscado simplificar a legislação, a tendência é de que o regime de impostos fique mais complexo por alguns anos.

A partir dos testes que se iniciam em 2026 até a vigência integral, em 2033, as empresas terão de refazer planilhas de custos e o poder público, atualizar processos arrecadatórios, dentre várias outras alterações. Os obstáculos são vistos como incontornáveis para superar um sistema de tributação burocrático e avançar para um novo modelo mais transparente e isonômico.

A reforma tributária criou um novo modelo de taxação sobre o consumo, com a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), cuja arrecadação será da União, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com arrecadação dividida entre estados e municípios. Do ponto de vista do consumidor, será visível nos preços os dois tributos juntos, que funcionarão como um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual. Além disso, foi criado o Imposto Seletivo (IS), apelidado de “imposto do pecado”, uma sobretaxa nos itens considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

A partir de 2027 deixam de existir o PIS/Cofins, o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para o setor de seguros e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para grande parte da operação fabril – ele permanece para produtos com similares produzidos na Zona Franca de Manaus. A transição será concluída em 2033, com a extinção total do ICMS (estadual) e ISS (municipal). As regras gerais foram aprovadas pelo Congresso no Projeto de Lei Complementar nº 68/24, complementando a Emenda Constitucional 132/2023, que instituiu a reforma tributária.

Os detalhes sobre o compartilhamento dos tributos e as alíquotas precisam ainda ser definidos em 2025, por meio de outras leis complementares. O pontapé nos trabalhos será dado por um Comitê Gestor Temporário, prevista na regulamentação aprovada pelo Congresso. Em 2026 ocorrem os testes da reforma: as empresas devem recolher os tributos como fazem atualmente, mas terão de emitir nota fiscal com os valores destacados de 0,9% do CBS e 0,1% de IBS. Com isso, a administração pública vai verificar se são necessários ajustes ou alterações no sistema. A partir de 2027 o CBS passa a ser integralmente cobrado, e o IBS, gradualmente.

“É uma grande revolução e vai mudar principalmente para o regime de caixa das empresas”, diz a advogada Claudia Pavan, consultora jurídica da Abagge Advogados. Hoje, a empresa primeiro fatura e depois recolhe os tributos. A reforma prevê a tecnologia split payment, um sistema parecido com a forma que funciona o cartão de crédito, explica ela.

Em uma compra de R$ 100, por exemplo, o lojista fica com R$ 90 e a operadora do cartão, com R$ 10 de taxa. “Vai ser a mesma coisa. A empresa vai receber o valor líquido dos impostos que vão ser separados pela instituição financeira e distribuídos ao ente público. Aquele caixa que permanecia com a empresa até a data de recolhimento do tributo deixa de existir. Mas continuarão as outras obrigações, como salário, imposto de renda”, observa.

Na avaliação do advogado Alexandre Tortato, a incidência concomitante de impostos distintos vai afetar a formação de preços. Um tributo não necessariamente vai gerar crédito, enquanto outros, sim.

Ele aponta para a necessidade de uma análise global das entradas e saídas financeiras de cada empresa. “Haverá alíquotas novas, será preciso verificar se vai ter aumento de carga, como vai adaptar na formação do preço, do produto ou do serviço. Verificar se no local de venda tenho benefícios, ou se compro produtos que vem com benefício, com custo ‘maquiado’, como vou substituir isso”, explica.

Um exemplo citado por Tortato é de uma fábrica no Paraná que adquire matéria-prima de um fornecedor de Goiás, a qual conta com algum incentivo. “A partir do momento que não tiver mais, será que vai fazer sentido comprar de Goiás? Ou seria melhor achar um fornecedor de Santa Catarina, com um custo de frete menor para o Paraná?”, exemplifica ele, que é ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (Carf).

Os especialistas apontam que essas mudanças na formação de custo dos produtos levam ao risco de pressão inflacionária. Além disso, haverá aumento de alíquotas de alguns serviços, como dentista, mecânico e cabeleireiro. “Vão recolher uma alíquota maior sem ter o crédito que a indústria tem”, afirma Claudia Pavan.

Para Alexandre Tortato, muitos fornecedores se verão obrigados a repassar custos, mas ele pondera que poderá haver economia em outras frentes, que também influenciam o preço final ao consumidor.

A reforma listou 19 setores de atividades intelectuais de natureza científica, literária ou artística que contarão com redução de alíquota (veja lista ao fim da reportagem), desde que submetidos à fiscalização de conselhos profissionais, prestados por pessoa física com habilitação específica na área e outros requisitos.

“Também é importante lembrar que quem presta serviço ou vende diretamente ao consumidor não vai recolher impostos novos. Os pequenos negócios de pessoa física continuam no Simples Nacional e o microempreendedor individual mantém o regime simplificado”, acrescenta Tortado.

Outra novidade que pode criar confusão é o cashback. Famílias com renda de até meio salário mínimo por pessoa – equivalente a R$ 706 por integrante, atualmente – terão direito a rever os tributos pagos nos bens e serviços consumidos.

“Aí tem complexidade, pois já fez o pagamento, e depois terá crédito para receber. A gente vê isso com certa desconfiança, porque sabemos a novela que é receber precatórios no Brasil. Acho que é um bom sistema, mas tem que ser bem executado. Precisa de fiscalização de quem é efetivamente credor, e o Estado deve honrar prontamente”, opina Claudia Pavan. 

Transição longa é proporcional à complexidade do sistema tributário

A consultora tributária Maria Carolina Gontijo também menciona os riscos inflacionários, com ajustes no preço dos produtos. A percepção de que o cenário “vai piorar antes de melhorar” se deve à série de ajustes que precisam ser feitos por todos os atores econômicos e governos.

“A transição é longa pela própria sistemática e tamanho da reforma, que não é fatiada. É uma reforma completa, e vai mexer em toda a base do consumo. Por isso se exigiu um desenho de transição mais longa que o ideal, pois envolve todos os entes públicos, União, estados e municípios, e uma gama de tributos”, diz.

Além disso, a reforma tributária teve de se adequar aos benefícios fiscais já concedidos pelos estados. A Lei Complementar 186/2021 permitiu a prorrogação do prazo de fruição dos benefícios e incentivos vinculados ao ICMS até 31 de dezembro de 2032. “Foi necessário respeitar esse período de benefícios fiscais vigentes, e por isso o IBS vai entrando aos poucos. Lógico que vai dar problemas, que vai piorar antes de melhorar”, pontua Maria Carolina.

Ela compara a situação ao caos vivenciado durante a reforma de uma casa. “Quando a gente está morando na casa e faz a reforma, precisamos conviver com o pó, com gente entrando e saindo, com a bagunça. Estamos morando aqui dentro do Brasil e vai ter muito transtorno, não há como ser de outro jeito”, destaca. Ela lembra da transição rápida de moeda entre URV e Real em 1994, que durou alguns meses, mas que é inaplicável para dois sistemas distintos de tributação.

A consultora tributária Claudia Pavan destaca que o período de transição permaneceu o mesmo desde o início da tramitação da reforma, em 2023. “Corresponde à complexidade do nosso sistema, que tem o codinome ‘manicômio tributário’. Para superação desse estado de coisas, precisamos de um tempo de adaptação da sociedade, das empresas e também do ente público, que vai ter a forma de arrecadação substancialmente alterada”, ressalta.

As fontes consultadas concordam que a reforma “não é ideal, mas foi a possível”. Dizem que a população participou pouco do debate, mas que um dos objetivos do novo sistema é justamente dar mais transparência para a cobrança dos tributos.

“Agora vamos enxergar quanto cada um recolhe de tributo, quanto é o custo para cada um e quem sabe conseguir fiscalizar melhor o que o ente público faz com esse dinheiro arrecadado”, sugere Claudia Pavan.

“Hoje, se o preço sobe, a pessoa culpa o mercado, mas não percebe que foi porque a alíquota de ICMS subiu dois pontos percentuais. A transparência traz a sociedade para esse debate tributário, porque hoje ela está completamente alheia”, diz Maria Carolina Gontijo.

O advogado Alexandre Tortato lista outra vantagem com a reforma tributária: a isonomia entre atores econômicos. “Há muita opinião de tributaristas, mas a gente tem que pensar no empresário, que está fazendo investimentos. Não há dúvida que vai dar muito mais isonomia e facilidade para apuração dos tributos e compreensão da carga tributária. Hoje há empresas que fabricam a mesma coisa, com carga diferente. Com a reforma, isso deixa de existir”, cita.

O deputado federal Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR), que desde 1991 atua pela concretização da reforma tributária no Brasil, afirma que a nova legislação vai modernizar os negócios.

“A reforma que está sendo aprovada é a maior e mais importante reforma liberal econômica da história do Brasil. Ele reordena o capitalismo brasileiro, que é o pior tipo de capitalismo do mundo, que dá estímulo fiscal para alguns e nada para outros, que permite a sonegação, que permite o contencioso, que permite a inadimplência e o gasto exorbitante com a burocracia. Este projeto conserta todos estes danos”, declarou Hauly ao programa “Voz do Brasil”.

Como será a transição para o novo regime criado pela reforma tributária

Confira a seguir como será a transição para o novo regime de impostos criado pela reforma tributária (fonte: Agência Senado, Comsefaz e PLP nº 64/2024)

Votação de lei complementar regulamentadora do Comitê Gestor e sobre transferência de receitas.

Votação de leis ordinárias para definir: alíquota do Imposto Seletivo; aspectos operacionais do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional e de Compensação de Benefícios Fiscais.

Regulamento da CBS e do IBS.

Desenvolvimento do sistema de cobrança da CBS e do IBS.

  • Ano de teste da CBS e IBS, com aplicação de alíquotas de 0,9% e 0,1%, respectivamente, compensáveis com PIS/Cofins (o recolhimento pode ser dispensado caso o contribuinte cumpra obrigações acessórias a serem definidas em ato conjunto do Comitê Gestor do IBS e da Receita Federal).
  • Cobrança integral da CBS
  • Extinção do PIS/Cofins
  • Extinção do IOF/Seguros
  • Instituição do Imposto Seletivo
  • Redução a zero das alíquotas de IPI sobre todos os produtos, exceto aqueles que também sejam industrializados na Zona Franca de Manaus.
  • Permanece o período de teste para o IBS, às alíquotas de 0,05% (estadual) e 0,01% (municipal), compensáveis pela União com a redução de 0,1% da alíquota da CBS.
  • Transição do ICMS e do ISS para o IBS via aumento gradual das alíquotas do IBS e redução gradual das alíquotas do ICMS e ISS.
  • 10% em 2029
  • 20% em 2030
  • 30% em 2031
  • 40% em 2032
  • Vigência integral do novo modelo e extinção do ICMS e ISS.

Reforma tributária: quais atividades terão redução (em relação à alíquota geral)

A reforma tributária criou uma lista de atividades intelectuais de natureza científica, literária ou artística que contarão com redução de alíquota (em relação à alíquota geral). Para ter alíquota reduzida, terão de ser submetidos à fiscalização de conselhos profissionais, prestados por pessoa física com habilitação específica na área e outros requisitos. As atividades são as seguintes:

  • administradores;
  • advogados;
  • arquitetos e urbanistas;
  • assistentes sociais;
  • bibliotecários;
  • biólogos;
  • contabilistas;
  • economistas;
  • economistas domésticos;
  • profissionais de educação física;
  • engenheiros e agrônomos;
  • estatísticos;
  • zootecnistas;
  • museólogos;
  • químicos;
  • profissionais de relações públicas;
  • técnicos industriais;
  • técnicos agrícolas; e
  • representantes comerciais.



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