Tudo se transformou


Em trinta anos, o telefone celular mudou comportamentos

À semelhança do automóvel e da televisão, que mudaram todas as sociedades em que foram introduzidos, o celular fez o mesmo

Se ao cantar a tua aldeia, cantas o mundo, como disse Tolstói, quem sabe contar a história de um objeto não seja a forma de descrever a de uma sociedade inteira? Peguemos o caso dos telefones celulares. Quando lançados, há mais de três décadas, pareciam excentricidades destinadas a ricos exibicionistas. Tão logo sua funcionalidade se provou, superando as falhas de infraestrutura, tornou-se um luxo cobiçado. A privatização e os planos pré-pagos permitiram sua disseminação e, a partir daí, não há palavra mais apropriada para descrevê-los do que ‘necessidade’ – talvez apenas ‘onipresença’.

Ao longo desse caminho, sua utilidade foi sendo descoberta e inventada pelo consumidor. A indústria agregava novidades aos aparelhos e esperava para ver o que delas resultaria. Para além das ligações convencionais, vieram as mensagens curtas de texto, os desenhos, o e-mail, a fotografia, os vídeos, a navegação na web, as redes sociais e os aplicativos, tornando esses aparelhos quase substitutos do computador. Nesse período, uma nova etiqueta foi sendo construída. Já nos habituamos a escutar, a contragosto, conversas alheias em ônibus, salas de espera, vestiários e escritórios. Pode não ser lá muito educado, mas como quase todos já usufruímos do “direito” de atender ligações em lugares públicos em algum momento, tornou-se tolerável. Deixar o aparelho tocar no cinema ainda representa motivo para reprovação, enquanto teclar ou rolar o feed no meio de uma reunião ou aula, comum. Encontrar mesas em que comensais se dedicam às telas, e não uns aos outros, também.

Daí que à ‘necessidade’ e ‘onipresença’ possa ser acrescentada a palavra ‘vício’ para descrever o celular atualmente. A ponto de se falar em uma patologia associada ao seu uso intensivoe de existirem clínicas de desintoxicação digital.Mas se a intenção for apenas não oferecer a tentação de dividir a atenção de alguma atividade com a tela, já existe uma empresa especializada em tornar ambientes mobile-free, ou seja, livres de celular. O aparelho é colocado dentro de um estojo e trancado por um dispositivo eletrônico parecido com os de alarme em lojas de roupas. Para acessar o telefone é necessário dirigir-se a uma base em que o estojo é destravado. A empresa atende eventos artísticos, colégios, palestras, domicílios e onde mais os celulares não forem bem-vindos.

À semelhança do automóvel e da televisão, que mudaram todas as sociedades em que foram introduzidos, o celular fez o mesmo. O mundo atual é mais visual e menos textual; mais superficial e menos focado; mais rápido e imediatista; mais narcisista; e mais público e menos privado do que aquele anterior a sua introdução, só para citar algumas das transformações. E dar razão a Marshall McLuhan (1911-1980), que afirmava: a mudança nunca é somente tecnológica; é sociológica também.



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