Um dos maiores inimigos do identitarismo brasileiro é um socialista
Antonio Risério se tornou uma pedra no sapato da esquerda identitária, e não à toa, apesar de abertamente socialista — fato que ele reafirmou em entrevista dada a mim, e publicada aqui na Revista Oeste em 2022 —, ele é também incrivelmente independente, dono de uma autonomia intelectual que vi pouquíssimos socialistas ostentarem publicamente na contemporaneidade. Apesar de seu profundo trabalho em sociologia e antropologia brasileiras, muito preocupado com a causa da identidade e o “ser brasileiro”, além das investigações sobre história negra, costumes populares e antropologia regional, seus escritos mais recentes versam sobre a temática do identitarismo. Não sei exatamente se por gosto ou por empurrões ideológicos de instante, fato é que ele se mostrou um dos mais competentes analisadores daquilo que ficou popularmente conhecido como “teoria de gênero” ou “crise identitária”.
Seus últimos três livros falam exatamente sobre isso, Mestiçagem, identidade e liberdade; A crise da política identitária; Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária — este último já em sua 2ª edição; e, no penúltimo, ele atua como organizador. Confesso que, hoje, Risério é o único sociólogo-antropólogo socialista que leio, já li muitos; aliás, talvez tenha lido na mesma proporção esquerdistas e direitistas em minha vida cotidiana e acadêmica. Leio Risério e tudo que ele escreve pois, apesar de discordar em muitas coisas — e concordar em muitas também —, costumo louvar e aplaudir a autonomia intelectual seja de quem ela vier, aquela dose sensata de rebeldia ante o statu quo que liberta a alma e as ideias, que garante a inventividade racional tipicamente humana. Como mostra o escritor, em especial em Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária, a nova ortodoxia sociorreligiosa, enclausuradora de mentes, é o esquerdismo identitário.
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Antonio Risério já sofreu censuras abertas do maior jornal do país, é odiado e escrachado publicamente por muitos daqueles que o aplaudiam quando estava fazendo campanha engajada por Lula em 2001 e 2002. Esses até fizeram uma espécie de abaixo assinado soviético para expulsá-lo da Folha de S.Paulo, afinal, os atuais defensores da “diversidade” e da “inclusão” odeiam com força inquisidora toda dissidência que conteste seus dogmas fofos e gulags de arco-íris. Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária é um dos livros mais geniais sobre o identitarismo lançados por brasileiros até o momento, sem dúvida é o mais agudo e cortante, seja pela inteligência perspicaz e “boca dura” de Risério, mas ainda mais pelo dolorido fato de ser um clássico socialista brasileiro a dizer tudo que ele disse naquelas páginas. Por tais análises críticas virem de um intelectual que apoiou e militou pela primeira candidatura de Lula — sem falar de sua juventude, durante a ditadura militar, onde participou, por exemplo, da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), grupo comunista radical que contava com Dilma Rousseff, entre outros —, por ser um socialista que habitou uma espécie de “olimpo comunista brasileiro” em outras épocas, por tudo isso os seus dedos na ferida parecem machucar muito mais do que as agulhadas argumentativas de qualquer bom conservador brasileiro — por mais habilidoso que esse seja.
Em Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária, sua análise da política identitária dispensa a enfadonha pompa acadêmica, ganhando propositalmente um teor ensaístico — ainda que guarde as definições claras de um aprofundamento letrado do que está sendo analisado livremente. As referências, mesmo quando não dadas, saltam das páginas, principalmente para aqueles que estudaram ou minimamente se interessam pela problemática identitária. Trata-se de um livro curto, escrito sob a pena de um esgrimado debatedor. Uma coletânea de análises que, no melhor dos sentidos, se tornou um pot-pourri que expõe o que é a alma, o esqueleto e a pele do identitarismo.
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Não espere, todavia, que o livro seja um pote de guloseimas conservadoras, sua crítica também se estende propositalmente aos cancros da direita extremista, e como um conservador formado numa herança teórica norte-americana, acho isso sensacional. Tento ser herdeiro de um conservadorismo esclarecido, não nutro apegos a pessoas e propostas autoritárias, não importando o canto ideológico que tal autoritarismo represente. Aliás, como um velho professor e amigo sábio sempre me dizia: “Ditadura é ditadura, cacete”, é exatamente o que Risério parece querem nos mostrar ao final.
Editado pela Topbooks, editora que se notabilizou por publicar clássicos liberais e conservadores em outros tempos, o livro é bem revisado e estruturado, talvez uma seção explicando “A história do identitarismo como desnorteamento do comunismo clássico” tivesse deixado o livro ainda mais completo e profundo, mas aqui é uma opinião apenas, quase um pitaco de um editor que publicamente inveja um ótimo trabalho de uma outra editora. Destaco um trecho da obra que talvez dê aos nossos leitores uma perspectiva interessante daquela liberdade intelectual que tanto frisei e elogiei no início desta coluna:
Nos dias que correm, não é preciso nem mesmo fazer este esforço, procurando ajoelhar confessionalmente ao próximo. A pessoa é acusada de racista antes mesmo de ter tido tempo de abrir a boca. Todos então acabam constrangidos a embarcar na canoa furada do identitarismo. Por esse caminho, de resto, o identitarismo implantou uma prática ditatorial, fascista, no mundo da arte e do entretenimento: artistas mulheres (lésbicas ou não), artistas pretos ou artistas gays são obrigados a militar, ou a militância vai fazer o que puder para sabotar e bloquear suas carreiras. Somos assim atirados de volta aos velhos tempos da política cultural soviética sob Stálin e Zdanov, agora em versão cromático-genital.
Genial e corajoso, e vindo de um socialista confesso, é quase assustador ‒ talvez eu tenha andado em demasia com os fanáticos, eu sei. Enfim, um livro que, por sanidade e apreço intelectual, indico sempre que posso a amigos, inimigos e desconhecidos que me interpelam. Quando me pedem um livro sobre identitarismo, é o primeiro que me vem à mente.